Desvalorização da dor é “um problema cultural” que só pode ser combatido com educação

Está a decorrer desde ontem a XVI Reunião Iberoamericana de Dor e 6º Congresso da APED, em Lisboa e, ao Raio-X, Ana Pedro revelou os principais tópicos que ao longo destes três dias serão alvo de discussão nesta reunião e partilhou algumas das suas preocupações no que respeita ao tratamento da dor. Segundo a presidente da APED, muito pode ainda ser feito em relação à organização das unidades de dor em Portugal, mas a grande prioridade é a aposta na educação dos doentes, dos profissionais de saúde, da sociedade e dos decisores políticos. “Não temos de aceitar a dor como uma inevitabilidade”, sublinha.

 RaioX (RX): No âmbito desta XVI Reunião Iberoamericana de Dor 6º Congresso da APED, qual é a importância desta partilha de conhecimentos além-fronteiras numa temática tão importante na área da saúde?

Ana Pedro (AP) – Esta reunião conjunta é resultado de uma parceria com a Federación Latinoamericana de Asociaciones para el Estudio del Dolor (FEDELAT) e com a Sociedade Espanhola de Dor (SED). O objetivo é a partilha, não só de conhecimentos sobre a dor, como também das dificuldades na prática clínica em países que partilham língua, cultura e história. Com a participação neste congresso podemos potenciar-nos uns aos outros, nas dificuldades que nós encontramos, para progredirmos mais no tratamento da dor nos nossos doentes.

RX – Quais vão ser os principais tópicos abordados ao longo destes três dias de reunião?

AP – O programa científico da reunião foi pensado ao pormenor tendo como destinatários todos os profissionais de saúde que lidam com a dor, seja ela aguda ou crónica. Nesse sentido, para além dos diversos workshops em destaque, o programa científico é enriquecido por temas como: a passagem da dor aguda para a dor crónica e, neste contexto, serão abordadas as unidades de transição, a dor em pediatria, por exemplo em cenários de catástrofe, a gestão e a adesão da terapêutica, reforçando a crucial necessidade da mensagem ser corretamente passada do médico para o doente, a importância do exercício como forma terapêutica, assim como outras terapêuticas não farmacológicas, a crise dos opioides, a gestão do doente difícil em unidade de dor, a dor pélvica, o selfmanagement, ou seja, de que forma é que o doente pode fazer a sua própria gestão em dor. Será um programa muito rico e variado.

RX – Em que consiste a campanha “Movimento para o Futuro” lançada neste congresso?

AP – A campanha “Movimento para o Futuro” tem como objetivo promover o movimento como forma de prevenção e tratamento de estados de dor ligeira a moderada nas suas múltiplas vertentes. Pretendemos mostrar que o futuro depende da prevenção e daquilo que o doente pode fazer para se ajudar a si próprio, nomeadamente o envolvimento no seu próprio tratamento. Ao mesmo tempo, pretendemos dar o vislumbre do que é que pode vir a ser o futuro na abordagem, no tratamento e no diagnóstico dos doentes e da dor. Nesse sentido queremos mostrar aquilo que está a ser feito, tanto em Portugal como nos outros países, bem como o que ainda pode vir a ser feito.

RX – E o que é que pode ainda vir a ser feito?

AP – Ainda temos muitas áreas nas quais temos que trabalhar, de forma a desenvolver cada vez mais as múltiplas vertentes do tratamento da dor. E o tratamento não passa só por medicamentos, embora estes tenham um papel bastante significativo. Temos de encontrar mais medidas, nomeadamente não farmacológicas e, simultaneamente, envolver o doente no tratamento. Temos também de estar mais despertos para a interferência que a dor tem na vida social, psicológica e familiar do doente. Todas estas abordagens têm de ser feitas em colaboração com os diversos profissionais que diariamente lidam com o tratamento do doente, para que possam partilhar a sua experiência pessoal nesse sentido.

RX – Ao longo das últimas décadas verificaram-se algumas evoluções em termos de organização de unidades de dor. Qual o contributo destas conquistas para uma melhor abordagem da dor?

AP – O nível de organização permite-nos sempre ter uma abordagem mais sistematizada do que fazemos, permite-nos ter resultados e fazer auditoria dos mesmos. Estas conquistas são resultado disso, têm vindo a ser feitas, mas têm de ser mais potenciadas. Aumentamos a organização de unidades de dor aguda, unidades de dor crónica e o acesso à formação por parte dos médicos porque todos os médicos, no seu dia-a-dia, tratam doentes com dor e têm de se sentir confortáveis e confiantes para dar seguimento ao seu doente e prescrever-lhe o melhor tratamento possível. É necessária a constante evolução, é preciso colocar a dor na ordem do dia, ou seja, a avaliação da dor terá de ser uma prioridade, seja na avaliação dos cuidados de saúde primários, seja na urgência ou no pós-operatório.

RX – Considera que ainda há uma grande desvalorização da dor, ou seja, o doente ainda acha que tem de sentir dor pelo facto de estar doente?

AP – Sim, no entanto, isso está muito relacionado com a nossa cultura judaico-cristã, sentirmos que o sofrimento faz parte e abraçarmos a dor como uma inevitabilidade. Temos de mudar esta perspetiva e isso passa pela educação, pela mudança daquilo que é a realidade das nossas crenças. Muitas vezes a dor apresenta-se como mais um sintoma que pode ajudar ao diagnóstico, ou seja, se eu diagnosticar a doença que leva aquela dor, eu posso tratá-la. A dor é um sintoma muito importante para chamar à atenção para uma doença de base que até pode ser grave e tratável. Contudo, quando a dor ultrapassa este objetivo fisiológico de nos proteger, ela passa quase a ser uma doença por si só. E é exatamente aí que se torna menos valorizada. E essa desvalorização parte dos doentes, dos familiares e, muitas vezes, até dos próprios profissionais de saúde. Nós não aprendemos a gerir a dor, aprendemos a tratar uma doença que tratará a dor e curará o doente. Temos de mudar esta ideia de que tudo tem de ter uma cura. Temos de pensar que, mesmo não conseguindo curar, se recorrermos ao tratamento mais indicado, podemos minimizar o impacto da dor e melhorar muito a qualidade de vida dos doentes.

RX – A IASP classificou 2018 como o ano global da excelência da educação em dor. Acredita que é daqui que tudo parte: da educação?

AP – Sem dúvida. A dor é tão transversal que pode afetar qualquer um de nós. Portanto, a educação e a formação de todo o público em geral, vai abranger doentes, familiares, cuidadores, médicos e até as classes políticas e os decisores. A educação é o que está na base de todo o conhecimento e progressão e o que se verificou é que existe um grande hiato entre aquilo que são os conhecimentos efetivos e reais sobre o que é que é a dor, o seu diagnóstico e o seu tratamento, e a prática e a realidade clínica do que acontece. E este hiato encontrado tem de ser ultrapassado através da educação e da formação de todo este público de forma a aproximar o conhecimento da prática clínica.

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