“Em Portugal, duas em cada dez pessoas têm anemia”

Membro do Anemia Working Group e ginecologista/obstetra do Hospital das Forças Armadas, em Lisboa, João Mairos chama a atenção para um problema que tem sido desvalorizado, mas cujas consequências são relevantes: a anemia e a ferropenia. A nível global, entre quatro a cinco biliões de pessoas têm carências de ferro, em Portugal, duas em cada dez pessoas têm anemia. Em entrevista ao Raio-X o especialista reforça a importância de diagnosticar e tratar as carências numa população particularmente suscetível: as mulheres grávidas.

 

Raio-X (RX) – Quatro a cinco biliões de pessoas vivem com défices de ferro, sendo que a maior parte delas não sabe. Estes números surpreendem-no?

João Mairos (JM) – Na realidade, não me surpreendem porque pertenço ao Anemy Working Group. Aliás, esses números já tinham sido revelados no estudo EMPIRE, tanto a questão da anemia como da ferropenia. Há um desconhecimento muito grande do ponto de vista da anemia e maior ainda em relação à ferropenia. Muitas vezes, os próprios médicos desvalorizam esta questão e não fazem qualquer avaliação porque não faz parte dos esquemas de rotina habitual.

 

RX – A realidade nacional encaixa-se também neste panorama epidemiológico?

JM – De acordo com estimativas da OMS, a realidade Portuguesa é muito semelhante à dos restantes países europeus. Todavia, o estudo EMPIRE demonstrou que, em Portugal, a situação é um pouco pior. Temos uma prevalência de anemia nas mulheres de 20,8% e esses valores não eram tão elevados de acordo com a estimativa da OMS. Também de acordo com o EMPIRE, na grávida, esta taxa é ainda mais elevada, cerca de 53%. No entanto, são necessários mais estudos para calcular com maior precisão a situação real nas mulheres grávidas. De acordo com o Anemia Working Group, em Portugal, duas em cada dez pessoas têm anemia.

 

RX – Que medidas preventivas podem ser adotadas para minimizar este cenário?

JM – De acordo com o estudo EMPIRE, a maior parte dos casos de anemia está em Lisboa e Vale do Tejo e no Sul do país. No Norte, a taxa de anemia é mais reduzida. Face a esta constatação, os nutricionistas sugeriam que uma das causas da anemia e da ferropenia podia ser um maior consumo de fast food. O consumo de fast food é maior em Lisboa e Vale do Tejo. Mulheres mais jovens, solteiras, estudantes consomem mais fast food. As mulheres do Norte, casadas, com uma alimentação mais tradicional são as que apresentam menos taxa de anemia e ferropenia. Essa pode ser uma explicação para esta diferença regional, o que não quer dizer que não possa haver outros fatores. Portanto, a alimentação variada e rica em todos os nutrientes essenciais pode ser uma medida preventiva.

 

RX – Em termos sintomáticos, como é que estas situações se manifestam?

JM – Astenia, fadiga, cansaço, sonolência são alguns dos sintomas associados a estados de ferropenia. No entanto, estes sintomas são frequentemente relacionados com outras situações, principalmente nas mulheres, nomeadamente a estados de depressão quando, na verdade, escondem uma ferropenia. E há casos em que este cansaço desaparece quase automaticamente quando é introduzido um suplemento de ferro. E é nesses casos que as pessoas percebem que, de facto, o cansaço tinha como origem uma carência de ferro.

 

“As mulheres são perdedoras crónicas de sangue”

 

RX – Mesmo na área da Ginecologia/Obstetrícia não há a noção destas carências de ferro?

JM – Creio que não há essa noção. Esta é uma área que não conhecemos muito bem, até pela nossa preparação de base. Tenho participado em várias conferências e reuniões para chamar a atenção para este problema, e só por esse motivo tenho aumentado o meu interesse por este assunto. Comecei a aperceber-me que as pessoas ferropenia têm queixas, mesmo sem terem critérios de anemia segundo os critérios da Organização Mundial da Saúde. As correções das ferropenias também são importantes para controlar os sintomas associados à ferropenia, e que muitas vezes são interpretados como depressões ou fadiga. Por outro, há doenças que estão frequentemente associadas à anemia e à ferropenia, como é o caso da insuficiência cardíaca e da doença inflamatória do intestino.

 

RX –  Mas mulheres são também um grupo suscetível ao desenvolvimento de anemia?

JM – As mulheres são perdedoras crónicas de sangue e, automaticamente, têm depósitos de ferro sempre mais baixos e, também por esse motivo, os critérios de hemoglobina da OMS para a classificação da anemia nas mulheres consideram valores mais baixos do que para os homens (12,5 g/dL na mulher, 13 g/dL nos homens e 11 g/dL nas mulheres grávidas).

 

RX – No caso das mulheres grávidas, dentro de toda a bateria de testes, análises e avaliações que são feitas durante o período de gestação, não é feita a medição do ferro?

JM – Pode ser feita, mas não é universal. Ou seja, não é uma avaliação que conste nas recomendações da Direção Geral da Saúde. Está determinada a avaliação da hemoglobina, mas não da ferritina.

 

RX – Mas a suplementação de ferro na gravidez tem recomendação universal?

JM – Está recomendada a suplementação universal. Tendo em conta as características da nossa população, e tendo em conta que são elevadas as taxas de défice de ferro na população feminina, poderá fazer sentido. No entanto, em alguns casos podemos estar a pecar por excesso e o ferro, em quantidades elevadas, pode ser tóxico. Mas, de um ponto de vista global, mais vale suplementar universalmente do que não fazer suplementação em todas as grávidas e correr os riscos das consequências da anemia nestas mulheres. A suplementação dirigida só faz sentido numa população muito bem estudada, que não é o caso da nossa.

 

RX – Em que circunstâncias é que, na mulher grávida, há indicação para utilização de ferro por via endovenosa?

JM – Fazemos suplementação de ferro para prevenir carências de ferro nas grávidas. Quando há insuficiências de ferro tratamos com ferro endovenoso. O ferro endovenoso é utilizado para tratar e não para suplementar. Por norma, recorremos ao ferro endovenoso quando o ferro, administrado por via oral, não é alternativa. Em casos de intolerância ou de ineficácia do ferro oral, na presença de uma anemia relevante e sintomática, temos de recorrer ao ferro endovenoso, mas só a partir do segundo trimestre.

 

RX – E no pós-parto?

JM – Se a mulher fez suplementação de ferro durante toda a gravidez, em principio, não há necessidade de prolongar no pós-parto porque o seu organismo está preparado para a perda de sangue e para a recuperação dessa perda. A mulher aumenta muito o volume sanguíneo durante a gravidez, precisamente para responder a essa perda de sangue durante o parto. Para os casos em que ocorre uma hemorragia excessiva que possa deixar a mulher numa situação de anemia, há critérios que determinam a suplementação ou tratamento com ferro. Cada caso deve ser avaliado individualmente, sendo que, em casos verdadeiramente graves, até pode ser necessário recorrer à transfusão sanguínea. Embora esta seja uma má solução. Tem riscos, tem custos e ninguém provou até hoje que fazer a transfusão é melhor do que não fazer. Os doentes que fazem transfusão têm maior mortalidade e morbilidade do que os que não fazem. Infelizmente, em algumas situações, é um mal necessário.

 

Por Cátia Jorge

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