Intervenção Endovascular no AVC Isquémico Agudo: Parecer da SPAVC
O acidente vascular cerebral (AVC) é a doença neurológica aguda de maior relevância, devido à sua incidência, espectro de idades em que ocorre e incapacidade que provoca. Em Portugal é a primeira causa de mortalidade e de perda de qualidade de vida.
Nos últimos 15 anos o tratamento do AVC agudo tem sido alvo de uma grande evolução, em que passámos de um niilismo terapêutico para a obrigatoriedade de uma cadeia de cuidados altamente complexa e especializada. Esta mudança só foi possível através da combinação de dois aspectos fundamentais: 1) especialização técnica e científica dos profissionais de saúde que tratam os doentes com AVC; 2) acesso em tempo útil dos doentes com AVC agudo aos melhores cuidados estruturados de fase aguda, que garantam simultaneamente qualidade, eficácia e segurança de todos os procedimentos.
Considerando todo o espectro de doentes com AVC isquémico agudo, existe um subgrupo muito importante em que ocorre uma oclusão aguda de um grande vaso cerebral (cerca de 25%), que usualmente se associa a défices neurológicos graves. Até há pouco tempo, o único tratamento validado para estes doentes, com o objectivo de recanalização vascular, consistia na administração de alteplase por via endovenosa.
Em 2015 foram publicados um conjunto de ensaios clínicos aleatorizados (MR CLEAN, ESCAPE, SWIFT-PRIME, EXTEND-IA e REVASCAT) que demonstraram o benefício da trombectomia mecânica no tratamento do AVC isquémico com oclusão aguda de grande vaso (artéria carótida interna ou segmento M1 da artéria cerebral média). Em consequência, as recomendações das principais Sociedades Científicas de AVC passaram a integrar este tratamento na abordagem terapêutica do AVC isquémico agudo, sublinhando que o tratamento endovascular seja realizado em Centros diferenciados e que a decisão de trombectomia mecânica deve ser multidisciplinar e incluir um neurointervencionista qualificado, treinado e experiente. Estima-se que este tratamento possa ser útil a cerca de 10% de todos os doentes com AVC isquémico agudo, sendo a selecção dos doentes elegíveis um passo crítico e complexo, só possível em ambientes clínicos altamente diferenciados.
As Sociedades europeias que regulam a prática médica, o tratamento do AVC e a intervenção neurovascular (UEMS, ESO, ESNR e ESMINT), postulam que a prática de neurointervenção deve ser apenas efetuada em Centros onde existam Departamentos de neurologia (com unidade de AVC), neurorradiologia, neurocirurgia, cuidados intensivos, devendo ser garantida toda a cadeia de cuidados de modo contínuo. Mais se recomenda que os procedimentos sejam efetuados por operadores experientes em intervenções neurovasculares, exigindo número mínimo de casos por operador e instituição, não englobando apenas as trombectomias mecânicas, mas um conjunto de outras técnicas do foro neurovascular.
O SNS necessita, urgentemente, de organizar e optimizar os recursos existentes no tratamento do AVC agudo, conectando a rede actual das Unidades de AVC aos Centros de Intervenção neurovascular. Essa organização deve valorizar os recursos qualificados que existem no terreno e respeitar os pressupostos científicos que modelam as leges artis. A máxima “tempo é cérebro” deve guiar o planeamento da rede, mas não deve legitimar a realização do tratamento em Centros não qualificados em terapêutica neurovascular, pondo em risco o sucesso e a segurança do mesmo.
Este equilíbrio entre proximidade à população e acesso à diferenciação técnica, obrigará à formação e diferenciação adequada dos profissionais para realização de intervenções neurovasculares. E obrigará também à optimização de uma rede de transmissão de dados, clínicos e de imagem, bem como de transporte eficiente de doentes, prevalecendo assim, a equidade de acesso dos utentes e a excelência dos cuidados de saúde, desígnios do Sistema Nacional de Saúde (SNS).
Desde 2015 que já assistimos, em Portugal, ao aumento acentuado do número de doentes com AVC agudo tratados com trombectomia mecânica directa ou na sequência de alteplase endovenosa. Estes tratamentos têm sido possíveis através da articulação entre as Instituições que participam na Via Verde de AVC e os Centros que disponibilizam neurradiologia de intervenção no SNS. Consideramos que deve ser assim o caminho para implementar esta intervenção, que progressivamente deverá ir melhorando o seu funcionamento. Pelo contrário, não recomendamos soluções de recurso a profissionais sem a perícia exigida para terapêutica neuro-vascular, sob pena de não estarmos a agir no melhor interesse dos doentes.
Terminamos com a consciência de que a melhoria do tratamento do AVC agudo em Portugal deve depender sempre da orientação de profissionais altamente especializados na área das neurociências clínicas. São estes os responsáveis pelas redes de cuidados actualmente implementadas e quem melhor sabe gerir os recursos existentes, salvaguardando sempre a qualidade dos procedimentos e a segurança dos doentes.
Parecer da autoria da direção da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, originalmente publicado em www.spavc.org