Fausto Pinto: “Sigo o princípio de ser quem sou e não o de quem poderia ter sido”
Adepto da corrida, amante da leitura e para sempre apaixonado por Lisboa, Fausto Pinto falou ao Raio-X sobre as múltiplas responsabilidades que, ao longo dos últimos anos, tem vindo a assumir, desde a liderança da European Society of Cardiology (ESC) à direção da Faculdade de Medicina de Lisboa, passando pelo atual cargo de diretor do Departamento de Coração e Vasos do Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Numa conversa informal, o cardiologista reforçou o papel da família na sua vida, sem esconder o recente desafio de ser avô. Fausto Pinto partilhou também a emoção de ter recebido o Papa Francisco no congresso da ESC, em agosto passado, num momento pleno de simbolismo, cuja mensagem correu o mundo.
Raio-X (RX) – Que balanço faz deste último congresso da ESC, enquanto presidente da direção Sociedade?
Fausto Pinto (FP) – O balanço é muito positivo. Foi o maior congresso de sempre, com mais de 33 000 participantes. Claro que não são apenas os números que traduzem a grandiosidade do congresso, mas sobretudo a qualidade científica dos temas debatidos e, nesse aspeto, o congresso foi um enorme sucesso. Neste momento, o congresso da ESC é a referência, em termos internacionais, quer para a educação, quer para a apresentação de novos resultados da investigação, de novos ensaios, ou para a apresentação das novas guidelines. Tivemos participantes de mais de 140 países. Tivemos representados todos os grupos profissionais, desde cardiologistas a cirurgiões, enfermeiros, técnicos, cientistas e todo um conjunto de pessoas que, hoje em dia, trabalham na área cardiovascular ou nas áreas afins. O tema do congresso era Heart Team, ou seja, quisemos dar ênfase à importância de trabalhar em equipa. Hoje em dia esse conceito é vital, sobretudo na área da Cardiologia. Também fiquei muito satisfeito com a forte participação de profissionais portugueses. Tivemos vários momentos especiais, nomeadamente a passagem de testemunho para a nova direção que vai assumir funções nos próximos dois anos.
RX – A presença do Papa Francisco foi também um desses momentos especiais?
FP – A visita do Papa no último dia do congresso foi, sem dúvida, um dos momentos altos desta edição, na medida em que veio dar uma grande visibilidade à nossa causa, reforçando a importância das doenças cardiovasculares. O discurso do Papa sobre a aproximação à ciência foi muito interessante. Penso que este momento foi o culminar de dois anos muito intensos. Foi, de facto, a cereja no topo do bolo.
RX – Noutros tempos, este encontro entre a ciência e a religião seria impensável…
FP – Penso que o Papa Francisco tem sido uma figura conciliadora em todos os aspetos. O convite que lhe dirigimos não foi tanto pela vertente religiosa, mas sim enquanto chefe de Estado, uma vez que estávamos em Roma. Por outro lado, representou também o reconhecimento da luta do Papa Francisco contra o sofrimento. Nesse aspeto, nós médicos, temos essa missão em comum. Ou seja, todos os dias trabalhamos e investigamos para reduzir o sofrimento dos que estão doentes. Esta foi a primeira vez que um Papa esteve presente numa reunião médica, precisamente para demonstrar esta aproximação com a ciência. Foi um momento carregado de grande simbolismo e com uma expressão mediática muito significativa. As fotografias correram o mundo, assim como a mensagem transmitida pela Papa sobre o peso da doença cardiovascular, sobre a sua prevenção e sobre a importância de nos unirmos todos nesta batalha.
RX – Do ponto de vista emocional, foi um momento que o marcou?
FP – Não posso negar que sim. Sou católico. Tive uma educação católica e não posso esconder que foi emocionalmente um momento de grande significado. Foi muito especial poder partilhar alguns pensamentos e algumas palavras com o Papa. Embora estivesse a representar uma sociedade científica que abarca profissionais de vários países e de diversas crenças religiosas, do ponto de vista pessoal, não deixei de me comover. O Papa Francisco é uma pessoa extremamente interessante, que tem feito um trabalho notável, numa altura em que o mundo vive períodos complexos. Esse contacto foi, para mim, um privilégio.
“Avanços na Medicina Cardiovascular foram os que mais contribuíram para aumento da longevidade”
RX – Durante este período em que esteve na liderança da ESC, e mesmo nos anos anteriores em que esteve mais próximo da Sociedade, quais considera terem sido as principais evoluções do mundo da Cardiologia?
FP – Formei-me em 1984, comecei na especialidade em 1987, fui para os Estados Unidos em finais de 1989, voltei, depois em 1993 e estive envolvido na Sociedade Europeia de Cardiologia desde os finais dos anos 90. Portanto, foram mais de 15 anos em que, dentro da ESC, fui passando por várias posições e posso dizer com toda a segurança que a Cardiologia foi uma das áreas da Medicina que ao longo destes anos, mais evoluiu. É uma área que sofreu avanços muito importantes, não só em termos tecnológicos, mas também na sua aplicabilidade na melhoria dos cuidados prestados aos doentes, sobretudo na área do diagnóstico e da terapêutica. É no campo da Medicina Cardiovascular que conseguimos uma redução significativa na mortalidade e na morbilidade globais. Cerca de 80% do aumento da longevidade das populações deve-se aos avanços nesta área. Em cada dez anos ganhos na esperança de vida, oito devem-se aos avanços da Medicina Cardiovascular. Conseguimos reduzir a mortalidade no enfarte do miocárdio de valores de 30 a 40% para valores de 7% a 8%.
RX – Esses avanços não têm a mesma expressão no campo da prevenção….
FP – Não. De facto, esse é um dos grandes problemas com que nos debatemos. Somos bastante bons a diagnosticar e a tratar a patologia cardiovascular, mas já não somos assim tão bons a prevenir. Aí, a responsabilidade não é só da comunidade cardiológica, mas sim da comunidade em geral. A prevenção está muito relacionada com hábitos de vida, com comportamentos alimentares, com o sedentarismo que são mais difíceis de mudar.
RX – Como é que se mudam comportamentos?
FP – Penso que há um grande comodismo e uma resistência à mudança. Apesar de se falar mais de doença cardiovascular, de fatores de risco, penso que as pessoas não conhecem tanto quanto seria desejável. Daí a importância de insistirmos nas mesmas mensagens. É por repetição que esses conceitos vão ficando enraizados nas populações. Por outro lado, a mensagem deve ser veiculada pela positiva e não pelo lado negativo. Ou seja, devemos sempre realçar o que se ganha e não o que se perde. Temos uma certa resistência às negações. Tudo aquilo que nos é negado é precisamente aquilo que pensamos que nos dá mais prazer. E aqui a comunidade científica tem alguma responsabilidade pois as mensagens são sempre transmitidas pelo lado mais negro, mais punitivo. Por outro lado, há sempre aspetos difíceis de contornar que são os interesses económicos que muitas vezes estão por detrás de certos hábitos e estilos de vida. Basta olharmos para o exemplo do tabaco. Esse tipo de influências e de interesses opõem-se, muitas vezes, àquilo que deveria ser feito.
RX – A educação é o caminho?
FP – Penso que falta essencialmente uma maior aposta na educação. É um processo contínuo e dinâmico. Não pode residir apenas numa ação ou numa campanha. É muito importante haver um envolvimento global da comunidade, e dos decisores políticos. Tem havido alguns avanços. Apesar de tudo, as leis antitabágicas têm sido mais restritivas, embora ainda haja espaço para se poder atuar de forma ainda mais agressiva. Aprovámos também a lei da redução das quantidades de sal no pão. Alguns passos já foram dados no sentido de ajudar à implementação de algumas dessas medidas. Mas este é um processo continuo e que precisa de um grande envolvimento de todos.
“Numa sociedade como a ESC não deve haver cortes radicais entre os planos estratégicos”
RX – Depois da presidência da ESC, que novos desafios estão a caminho?
FP – Antes de mais, continuo com a direção do Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Lisboa Norte e como diretor do Departamento de Coração e Vasos. Por outro lado, mantenho também a direção da Faculdade de Medicina de Lisboa que é também um cargo bastante exigente. No que respeita à ESC, enquanto past-president terei algumas funções associadas, sendo uma delas a do recém-criado cargo de Chairman da European Heart Agency, que é a nossa delegação em Bruxelas.
RX – O conceito de continuidade é um dos segredos da ESC?
FP – Sim. No fundo, uma pessoa que seja eleita para presidente da Sociedade, já sabe que tem de assumir o cargo por seis anos: dois anos como presidente-eleito, dois anos como presidente e outros dois anos como past-president. É feito um trabalho de equipa para garantir a continuidade dos planos estratégicos definidos e para evitar que a entrada de uma nova direção determine uma espécie de soluço. Tem de haver, em cada nova direção, o compromisso de dar seguimento aos planos definidos pelas direções anteriores. Numa sociedade como a ESC não deve haver cortes radicais entre os planos estratégicos de uma direção e os da direção seguinte. Isso implica estar sempre a recomeçar e condiciona os avanços. Isto não significa que, por vezes, não haja necessidade de haver ruturas. Mas penso que, para uma sociedade científica, é importante haver uma linha estratégica a longo prazo. O objetivo é que cada nova direção acrescente algo de novo a uma base que já vem de trás.
RX – E o que é que sente que acrescentou durante estes anos em que esteve na liderança da direção da ESC?
FP – Penso que a minha principal contribuição foi a otimização da estruturação interna, a criação e um plano estratégico para os próximos cinco anos, com um novo esquema de membership, que foi já implementado. Foram também implementados dois novos councils: um para o acidente vascular cerebral (AVC) e outro na área da educação e acreditação. Recriámos, em conjunto com a UEMS, uma nova estrutura para a acreditação e certificação que, neste momento, está a ser implementada. Por outro lado, houve também um grande reforço da plataforma digital, na qual, constam já mais de 700 cursos, congregando todas as áreas da Medicina cardiovascular. Para rematar, penso que os dois congressos organizados pela minha direção, quer o de Londres, quer o de Roma, contribuíram para reforçar a imagem da Cardiologia Europeia e para a globalização da Sociedade. Neste momento, cerca de 35% das pessoas que vêm ao nosso congresso são profissionais de fora do espaço ESC, ou seja, da Ásia, da América, de África. Também durante este período, foram reforçadas relações de parceria com outras sociedades de várias partes do mundo. É muito gratificante vermos as guidelines da ESC a serem apresentadas em reuniões do Japão ou na Austrália, por exemplo, o que até há alguns anos era impensável.
Conciliar funções
RX – Apesar de todos estes cargos que neste momento ocupa e com toda a responsabilidade que tem sobre si, continua a fazer atividade clínica e a ver doentes. Como é que consegue conciliar?
FP– É muito importante haver uma boa organização não só interna, como institucional. É preciso criar equipas. A chave do sucesso não está centrada apenas numa pessoa, mas sim numa equipa. Embora esteja centrada em mim a definição das grandes linhas, é muito importante delegar tarefas. É importante estar cercado de equipas capazes de implementar as tarefas que são definidas. Acabo por ter um papel de facilitador, de estratega e não propriamente de executor. Interessa-me ver os resultados e definir os caminhos para lá chegar. Depois cabe às várias equipas entrar no detalhe e seguir esse caminho que nos leva aos resultados. Trata-se essencialmente, de ter as pessoas certas nos lugares certos. Trata-se de criar relações de confiança com um núcleo de profissionais com que podemos contar para alcançar um objetivo. Isto é válido para a ESC, para a Faculdade de Medicina de Lisboa e para o próprio Serviço de Cardiologia.
RX – Sente que, de alguma forma, estes anos mais intensos acabaram por penalizar a sua vida pessoal e familiar?
FP – Penso que isso seria inevitável. De facto, a vida pessoal e familiar acabou por ser penalizada. Sou casado, tenho cinco filhos e acabei de ser avô de uma menina. Esforço-me para ter uma vida equilibrada e aposto muito no quality time. Orgulho-me da forma como tenho conduzido a minha vida, apesar de nem sempre fazer tudo como gostaria de ter feito. De uma forma geral, sou uma pessoa feliz e realizada a nível pessoal e profissional.
Respostas rápidas para perguntas curtas
Cidade preferida: Lisboa. Sempre Lisboa
Um livro marcante: Adoro ler e a escolha é difícil. Nos últimos anos, os dois livros que mais me marcaram foram a Mancha Humana, de Philip Roth, e As Benevolentes, de Jonathan Littell.
Um filme inesquecível:Também tenho de escolher dois – Casablanca e O Cinema Paraíso
Uma figura de referência: A nível pessoal, o meu pai. A nível profissional, o meu mentor, nos Estados Unidos, o Prof. Richard Popp e, em Portugal, o Prof. Fernando Pádua.
Uma atividade lúdica: Adoro viajar, adoro ler e tento manter o nível de leitura adequado ao tempo disponível que tenho. Gosto muito de correr. Gosto de música clássica e jazz e gosto muito de cinema também.
Um lema de vida: Ao longo da minha vida tenho seguido o principio de ser quem sou e não o de quem poderia ter sido. Quero ser quem sou, com aquilo que construí.
Entrevista por Cátia Jorge