Miguel Guimarães, o bastonário que estava predestinado a sê-lo
“Agir já, sem medo e com determinação.” Foi com esta postura destemida que o novo bastonário da Ordem dos Médicos se revelou às centenas de médicos presentes na sua tomada de posse, asseverando que vai continuar a política interventiva do seu antecessor. O Presidente da República salientou que Miguel Guimarães “preparou a sua vida para este momento» e que «a Ordem tem a felicidade de o receber no momento ideal”
Foi com sumptuosidade que o novo bastonário da Ordem dos Médicos (OM) tomou posse, no passado dia 8, numa cerimónia que preencheu os lugares sentados (e em pé) com centenas de médicos, do Salão Nobre da Academia de Ciências de Lisboa.
O Presidente da República e o ministro da Saúde também marcaram presença na sessão que abriu com o hino nacional cantado pela soprano Mónica Pais.
O cargo, como afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, estava «predestinado» ao médico com a cédula número 31852, tendo sido com «confiança reforçada» pelos seus pares que Miguel Guimarães se apresentou, «empenhado» em cumprir o seu programa de reformas, perseguindo o «objetivo dos melhores cuidados aos doentes, preservar a qualidade da Medicina e dignificar a profissão».
«Não posso esconder a emoção, a honra e o privilégio que sinto ao assumir a liderança da Ordem dos Médicos, ciente, contudo, do trabalho árduo que tenho pela frente», disse no início do seu discurso o novo bastonário, não sem antes agradecer a José Manuel Silva por «ter sido, durante os últimos seis anos, um bastonário virtuoso, uma voz ativa na defesa da qualidade da Medicina, dos doentes e dos médicos».
Assumindo-se como «um bastonário que representa todos os médicos, no sector público, privado ou social», o responsável lembrou as metas ambiciosas do seu programa tendo elencado as «prioridades claras na sua execução»: a ética e a relação médico-doente, a formação e a qualidade da medicina.
Miguel Guimarães recordou que «a relação entre os médicos e os doentes está fortemente ameaçada» e que «assistimos a uma tendência perigosa de transformação da nossa profissão numa tarefa excessivamente administrativa». Mas, para o novo bastonário, «a OM não pode aceitar este caminho como uma inevitabilidade», considerando que «é fundamental agir já, sem medo e com determinação, contribuindo com soluções concretas e que estão na esfera de intervenção da OM», disse, referindo-se à fixação de tempos mínimos de consulta, «cuja determinação pode e deve ser assumida, sem receios, pelos Colégios de Especialidade».
De igual modo, o dirigente quer «agendar a redução progressiva da dimensão das listas de utentes dos médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar», reforçando que «os médicos têm que ter tempo para acompanhar os seus doentes, participar nos projetos de promoção da saúde e de prevenção da doença, realizar investigação, fazer formação contínua e apoiar a formação especializada dos jovens colegas».
Ainda na relação médico-doente, e olhando para o ministro da Saúde presente na primeira fila, Miguel Guimarães disse que «temos que exigir que o Ministério da Saúde assegure uma eficiente gestão dos recursos tecnológicos à sua disposição, procurando rapidamente diminuir o grau de inoperância que atualmente se verifica, aperfeiçoar e simplificar as aplicações informáticas e investir em equipamentos, uma das áreas em que o SNS continua a retroceder perigosamente».
Outra prioridade do novo presidente da OM é a concretização de uma Lei do Ato Médico que «verdadeiramente proteja os doentes e que assegure à nossa profissão o lugar de liderança e centralidade em todo o sistema de saúde». Segundo Miguel Guimarães, está a assistir-se nessa matéria a «um verdadeiro retrocesso civilizacional e científico», lembrando que «o nosso legislador e poder político equipararam e assimilaram o ato médico às terapêuticas não-convencionais».
A defesa da qualidade da formação médica é outra das áreas prioritárias, considerando o médico ser «imperioso adequar o numerus clausus às capacidades formativas pré e pós-graduadas», bem como «promover internamente um processo de revisão dos internatos médicos, que garanta um acesso mais equitativo à formação médica especializada, permitindo, em todos os casos onde tal seja possível, que os jovens colegas cumpram períodos de formação em unidades de saúde centrais e periféricas, mantendo o seu serviço de referência». Por fim, o dirigente está determinado a criar uma bolsa de apoio à formação médica especializada e «encontrar parceiros sociais que possam contribuir para constituir um fundo específico para promover a formação médica contínua».
Lembrando as «condições cada vez menos favoráveis à obtenção de capacidades formativas», Miguel Guimarães disse também contar com a «colaboração ativa» do ministro da saúde nesta questão. «É indispensável dotar os serviços de saúde com mais recursos técnicos e humanos para que possamos manter os bons cuidados de saúde e melhorar a capacidade formativa, mantendo o elevado nível de qualidade que nos é reconhecido internacionalmente. A Ordem não vai abdicar das avaliações e critérios que têm permitido aos nossos médicos terem uma formação de excelência», garantiu, dirigindo-se mais uma vez a Adalberto Campos Fernandes.
Pacto para a saúde, desde que assegurado o financiamento do SNS
Relativamente ao repto já lançado pelo Presidente da República para um pacto para a Saúde, assente em princípios fundamentais de consenso alargado na sociedade e em compromissos políticos duradouros, o responsável afirmou que «os médicos estão disponíveis para ajudar a construir uma Saúde melhor», alertando, contudo, que «estes compromissos só são possíveis se, previa e antecipadamente, estiverem asseguradas as condições que salvaguardem o financiamento adequado do SNS para permitir as reformas necessárias, o investimento nas pessoas, a aposta séria na formação e na investigação e o reforço do papel da medicina privada de proximidade e de pequena dimensão».
A esse propósito o bastonário, que venceu expressivamente as eleições do passado dia 19 de janeiro, frisou que «o médico de família tem de ter mais tempo para acompanhar os doentes, mas também para fazer investigação e formação», tendo lançado ao ministro da Saúde dois desafios para os próximos dois anos: «criar as condições de trabalho necessárias para mantermos os nossos melhores valores, os jovens médicos» e «devolver a equidade ao SNS, criando as condições necessárias para corrigir as insuficiências e deficiências das regiões mais periféricas, desfavorecidas e carenciadas».
«Há um tempo antes e depois do mandato do Prof. Dr. José Manuel Silva»
As primeiras palavras do ministro da Saúde foram para o bastonário cessante, José Manuel Silva, destacando a forma por vezes «corajosa e atrevida» como o médico defendeu os doentes e a classe, ainda que assuma que nem sempre esteve de acordo. «Há um tempo antes e outro depois do mandato do Prof. Dr. José Manuel Silva», sublinhou, dando de seguida as boas-vindas a Miguel Guimarães, afirmando que é o «homem certo, no momento exato» e prometendo uma «cooperação leal» no seu mandato.
Sobre os desafios já lançados por Miguel Guimarães, Adalberto Campos Fernandes afirmou que «as prioridades apresentadas coincidem em grande medida com as do Governo».
Miguel Guimarães termina um «percurso predestinado para esta função»
Já o Presidente da República, começou por explicar que «em nenhum outro local poderia realizar-se esta cerimónia», destacando que a Academia das Ciências de Lisboa é «um repositório da história do nosso país, da ciência e da cultura e do conhecimento».
Depois, evidenciou a forma «determinada, teimosa e apaixonada» como o bastonário cessante enfrentou os seus dois mandados num período crítico da governação, embora tenha assumido não ter concordado com tudo.
Para o bastonário já em funções, Marcelo Rebelo de Sousa disse «em voz alta o que todos pensam»:
«O Prof. Dr. Miguel Guimarães termina hoje um percurso predestinado para esta função. Percorreu todos os degraus, na sua vida académica, na caminhada profissional e no exercício das suas funções anteriores. Preparou a sua vida para este momento e a Ordem tem a felicidade de o receber no momento ideal».
O discurso da tomada de posse do novo bastonário está disponível na íntegra aqui
https://www.ordemdosmedicos.pt/send_file.php?tid=ZmljaGVpcm9z&did=b5baa9c23ac3e015ad287b17a3d4afa3
«Valeu a pena»
José Manuel Silva, que deixou o cargo que ocupou durante seis anos, um período que apelidou de «incessante montanha russa», passou em revista os momentos mais marcantes, tais como o apoio às duas greves médicas e o discurso que proferiu na manifestação de 11 de julho de 2012. A oportunidade não foi perdida para lamentar perante os presentes «o esmagamento da pequena medicina privada», bem como os «pouco éticos interesses que gravitam» à volta do Orçamento da Saúde e as «ameaças à qualidade da formação médica».
Para o ex-dirigente, que disse adeus e assumiu «as saudades das pessoas», «valeu a pena».
Miguel Guimarães insta ministro a alterar legislação sobre apoios da IF
«A Ordem pugnará pela alteração da mais recente legislação que proíbe os estabelecimentos e serviços do SNS de receberem quaisquer apoios da indústria farmacêutica, designadamente aqueles que financiam atividades de natureza científica e formativa», afirmou Miguel Guimarães.
Instando a Tutela a modificar o decreto publicado no início de janeiro, e dirigindo-se ao ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, o responsável alertou que «abandonar o apoio que a indústria concede à investigação e formação clínicas pode representar um erro que urge reverter, impondo-se a reponderação de uma medida estigmatizante, injusta e potencialmente lesiva dos interesses dos doentes e dos médicos».
«Louve-se o esforço legislativo em nome da transparência e integridade das instituições, mas V. Ex. compreende, melhor do que ninguém, a importância estratégica que a indústria assume no desenvolvimento da medicina e da formação. Uma lei desta natureza representa o fim de centenas de projetos de investigação clínica, restrições à formação contínua e ao desenvolvimento dos serviços e unidades de saúde, e representa uma discriminação inaceitável entre o sector público e o sector privado», disse o novo bastonário ao líder da pasta da Saúde.
Artigo publicado em Tempo Medicina https://www.tempomedicina.com/
Texto por Teresa Mendes
Fotos por Fernanda Jacinto