Dia Mundial da Esclerose Múltipla: Como é viver com esta doença?
Afeta 8 mil pessoas no nosso país, mas muitos portugueses ainda não sabem como é viver com esta doença. Falamos de Esclerose Múltipla (EM), a doença neurológica mais comum e incapacitante em jovens adultos e que surge frequentemente entre os 20 e os 40 anos. A EM é uma condição inflamatória crónica do sistema nervoso central, cujo o dia se assinala hoje. O RaioX entrevistou a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), Susana Protásio, que nos falou sobre a doença, sobre o lançamento dos “Sete Princípios para Melhorar a Qualidade de Vida dos Doentes com EM” e sobre o papel da SPEM na vida dos seus associados. Visitámos também a “Casa da Esclerose Múltipla”, que esteve uma semana no Centro Colombo, e que pode ver numa galeria fotográfica mais a baixo neste artigo.
Raio-X (RX) – Porque continua a ser necessário divulgar a Esclerose Múltipla (EM)? Consideram que ainda existe desconhecimento e estigma em relação à doença?
Susana Protásio (SP) – Sim, efetivamente ainda existe desconhecimento e mesmo estigma. No que toca ao desconhecimento, podemos classifica-lo em distintos níveis: o primeiro é o das pessoas que não sabem nada sobre a doença e aí tentamos contrariar o estigma. Passando a um nível diferente, pretendemos que mesmo os que conhecem a doença estejam atentos aos primeiros sintomas já que o diagnóstico precoce é fundamental para o início da terapêutica e a contenção da progressão da doença. E para os que estão em tratamento, é importante conhecerem a evolução das terapêuticas e os métodos de acompanhamento da doença e dos seus sintomas, já que esse conhecimento poderá ajudar muito a uma boa gestão da doença.
RX – Como se caracteriza a EM: a doença é igual para todas as pessoas?
SP – Penso que a maior verdade sobre a EM é mesmo de que cada pessoa tem a sua (versão). A própria classificação da doença tem evoluído para melhor descrever as suas duas vertentes: episódios de forte inflamação (surtos) e progressão continuada. A maioria das terapêuticas dedicadas impacta sobre a ocorrência de surtos. A progressão está sempre presente, mas a sua velocidade é que varia muito de pessoa para pessoa. Penso que o maior fator de diferença, e mesmo de ansiedade pois impede uma visão a prazo do estado da pessoa com EM, é exatamente esse: como é que vou estar daqui a X tempo?
“Penso que a maior verdade sobre a EM é mesmo de que cada pessoa tem a sua (versão). A própria classificação da doença tem evoluído para melhor descrever as suas duas vertentes: episódios de forte inflamação (surtos) e progressão continuada. A maioria das terapêuticas dedicadas impacta sobre a ocorrência de surtos. A progressão está sempre presente, mas a sua velocidade é que varia muito de pessoa para pessoa”
RX – Quais são os sintomas mais comuns?
SP – Ao afetar o sistema nervoso central, a EM apresenta um quadro de sintomas muito lato e que, aqui ou ali, coincide com os de outras patologias. Daí, por vezes, o diagnóstico tardio. Comum à quase totalidade das pessoas com EM: o cansaço. Mas podemos falar de perturbações da visão, em particular, visão dupla. Problemas de coordenação motora que podem ir desde a destreza fina à locomoção. A evolução da EM introduz outros problemas de dor, controle de esfíncteres, redução das capacidades cognitivas, formigueiros e espasmos musculares, perturbações da fala ou da deglutição, perturbações na sexualidade e também emocionais com frequentes quadros de depressão. Não se pode bem falar de um ou dois sintomas típicos, mas de um cocktail de perturbações que não são constantes nem previsíveis.
RX – No passado dia 24, apresentaram o documento “Sete Princípios para Melhorar a Qualidade de Vida dos Doentes com EM”. Porque se mostrou necessária a criação deste documento?
SP – Por tudo o que foi dito até agora, percebe-se que a EM acaba por impactar em qualquer atividade do dia a dia da pessoa com EM. Cada sintoma, cada combinação de sintomas, a irregularidade com que se manifestam, a incerteza quanto à possível progressão da doença e do seu quadro incapacitante: tudo isto afeta a pessoa, a família, os mais próximos, o trabalho, os rendimentos disponíveis, a possibilidade de ter ou programar momentos de lazer, por exemplo. Era importante criar um quadro estratégico de ataque à EM, que cobrisse todas essas frentes, de uma forma organizada e clara. É uma ferramenta fundamental para que a sociedade não estigmatize a EM e que todos nos consigamos envolver a potenciar a qualidade de vida das pessoas com EM. Outra enorme qualidade do documento é a sua universalidade pois resulta de consultas feitas em todo o mundo e, não estabelecendo hierarquias nas suas recomendações, cada país, região, família ou pessoa, pode encontrar aí a sua própria prioridade e orientação.
“A EM acaba por impactar em qualquer atividade do dia a dia da pessoa com EM. Cada sintoma, cada combinação de sintomas, a irregularidade com que se manifestam, a incerteza quanto à possível progressão da doença e do seu quadro incapacitante: tudo isto afeta a pessoa, a família, os mais próximos, o trabalho, os rendimentos disponíveis, a possibilidade de ter ou programar momentos de lazer, por exemplo”
RX – Qual diria que é o maior problema que os doentes enfrentam neste momento?
SP – Falando em termos nacionais: a falta de capacidade de ressonância magnética, primeiríssimo meio de diagnóstico e acompanhamento da doença. A falta de serviços paramédicos de acompanhamento ao quadro dos sintomas da EM: fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala, psicologia, ginástica adaptada, treino cognitivo, que, quando disponíveis de forma continuada, impedem a perda de capacidades físicas e/ou cognitivas. Existe também uma grande falta de compreensão, por parte dos empregadores, de como as pessoas com EM se podem manter ativas e produtivas no trabalho, com pequenos ajustes ao horário e local de trabalho. Por fim, a falta de legislação protegendo o cuidador e, nos casos em que a doença progrediu muito e não existem cuidadores dedicados, a falta de instituições dedicadas ao cuidado exclusivo de pessoas com EM
RX – Qual o papel dos cuidadores na melhoria da vida dos doentes?
SP – Os cuidadores, familiares ou não, são determinantes na qualidade de vida das pessoas com EM. Pelo que acabei de expor, nem são sempre necessários, mas é importante que a pessoa com EM saiba que existem e estão disponíveis para intervir em situações de crise. Nos casos mais complexos, podem ser prestadores de cuidados 24 horas por dia, 7 dias por semana. Muitos reduzem, alteram ou anulam a sua vida profissional. E… cansam-se. Temos grandes preocupações com os cuidadores, tentando criar-lhes situações de descanso (colónias de férias, residências temporárias), atuando a nível da legislação, dando-lhes formação e prestando serviços que os substituem, pelo menos temporariamente (higiene pessoal ou habitacional, fornecimento de refeições, acompanhamento a consulta).
RX – Qual o vosso papel na vida dos doentes com EM? Conseguem, neste momento, ser uma resposta às necessidades dos doentes, de que forma?
SP – A SPEM presta apoio integrado e multidisciplinar às pessoas com EM, através de serviços especializados: Centros de Atividades Ocupacionais, Unidades de Neuro-reabilitação, Apoio Domiciliário, Consultas de Psicologia, Serviço Informativo Social e o Aconselhamento Jurídico. Temos em curso a expansão do Centro de Reabilitação de Lisboa e o Centro de Atividades Ocupacionais de Leiria; vamos arrancar com uma linha de atendimento dedicada; vamos lançar o curso europeu de formação/acreditação de enfermeiros especializados em EM; igualmente estamos a trabalhar na tradução e adaptação duma ferramenta de treino cognitivo específica para EM e temos em curso vários projetos com o apoio de fundos comunitários com vista à criação de condições e oportunidades de empregabilidade para pessoas com EM e também de residência temporária e programas de turismo adaptado.
“A SPEM presta apoio integrado e multidisciplinar às pessoas com EM, através de serviços especializados: Centros de Atividades Ocupacionais, Unidades de Neuro-reabilitação, Apoio Domiciliário, Consultas de Psicologia, Serviço Informativo Social e o Aconselhamento Jurídico”
Apesar de já estarmos presente em todas as zonas do país, também pretendemos chegar cada vez mais longe e de uma forma mais dedicada para o que tem contribuído o enorme trabalho dos nossos voluntários – um exército de gente que, na sua área de influência, contribuem para a procurada melhoria da qualidade de vida das pessoas com EM. Penso que uma associação de doentes jamais poderá colocar-se na situação de satisfazer as necessidades dos doentes, e a SPEM ao longo dos seus mais de 30 anos de missão, é bem prova disso. Só poderíamos estar satisfeitos se a doença tivesse cura e pudesse até ser erradicada (por exemplo, por vacinação). As necessidades evoluem. Partimos dum quadro de desconhecimento da doença e de ausência de tratamento para a realidade de hoje que é totalmente diferente.
RX – Qual o contributo da SPEM para a defesa da melhoria dos cuidados prestados aos doentes com EM?
SP – Se olharmos para o documento com os sete princípios que me parece cobrir exaustivamente todas as áreas de intervenção, e depois de tudo o que foi dito, acho que ficou só a faltar referirmo-nos ao papel que a SPEM também desempenha junto dos poderes públicos e organismos competentes, especialmente nas áreas da saúde e social. O documento expõe o papel claro que o país onde nos encontramos, a sua estabilidade, a sua economia, o seu quadro legal e as políticas públicas em prática influenciam a qualidade de vida do cidadão comum, obviamente, mas mais ainda de alguém com EM (ou um quadro de doença crónica e/ou deficiência), pelo que é incontornável o nosso papel e trabalho nessa área de ação embora, por vezes, não sendo individualmente dirigido, possa ser menos percetível por cada indivíduo.
A “Casa da Esclerose Múltipla”
A “Casa da Esclerose Múltipla” é uma casa modelo, produzida pela Merck, que vem ao encontro do trabalho desenvolvido pela SPEM cujo objetivo é chegar à população em geral. O que se pretendeu foi que todos pudessem experienciar alguns sintomas da doença, principalmente os mais relacionados com incapacidade física. Desta forma todos os que não têm a doença conseguiram experienciar os desequilíbrios ao caminhar, o que é olhar para a televisão e ver a imagem desfocada e o cansaço, físico e psicológico com que se lida quando se tem que viver com EM.
Por Margarida Queirós
Veja aqui a fotogaleria:
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