“Portugal é globalmente um país avançado no combate à Hepatite C”
De modo a assinalar o Dia Mundial de Combate à Hepatite, o Raio-X entrevistou Henrique Lopes, Professor e Investigador do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa sobre a hepatite C “que afeta cerca de 60 mil pessoas” com o objetivo de esclarecer, alertar e perceber a melhor forma de lidar com esta patologia.
RAIOX (RX) – O que é a hepatite C?
Henrique Lopes (HL) – A hepatite C é uma doença infeciosa causada por um vírus RNA do tipo Hepacivirus pertencente à família Flaviviridea. Este vírus foi descoberto em 1989. Antes disso, a hepatite era designada “Não A – Não B”. É um vírus bastante agressivo e que se pode multiplicar rapidamente dentro do organismo humano ao ritmo de 12 milhões de vírus por dia. É um vírus oncogénico, isto é, promove o aparecimento de cancro numa certa percentagem de pessoas infetadas. Para além de potenciar o cancro do fígado (Hepatocarcinoma) pode causar, também, problemas autoimunes ao seu portador.
Existem 6 estirpes principais de vírus da hepatite C, e uma pessoa pode estar infetada por uma ou mais. A predominância das estirpes varia bastante de região para região, embora em todas as regiões se possa encontrar alguém com qualquer uma destas. Em Portugal encontram-se, principalmente, as estirpes 1 e 3.
RX – Quais os sinais de alerta da hepatite C?
HL – Os principais sintomas da hepatite C são uma dor no lado direito da zona abdominal sobre o fígado, muito cansaço, dores nas articulações, urina escura, o já referido “amarelecimento” da pele e olhos, entre outros.Uma pequena percentagem de pessoas desenvolve uma reação forte na sequência do contágio. Algo parecido com uma gripe forte onde, por vezes, se junta um aspeto “amarelado”. A larga maioria é assintomática nos meses e mesmo anos ou décadas após o contágio. Das pessoas infetadas, um número elevado desenvolve infeção crónica. Não há consenso sobre esse número porque é quase impossível detetar as pessoas que foram infetadas e se curaram espontaneamente sem ter chegado a saber que estiveram doentes. Os estudos variam para valores entre 50% e 85% de doentes crónicos.
RX – Quais são os fatores responsáveis pela transmissão da doença no país?
HL – A doença é transmitida através de todos os contactos que possam envolver sangue: pelas transfusões (só em 1992 é que começou a haver testes seguros para fazer rastreios da hepatite C nas transfusões sanguíneas); por trocas de seringas; contacto sexual; realização de tatuagens em que o material de picada não esteja esterilizado e seja descartável (há também a ideia de que o vírus pode sobreviver em algumas das tintas que tenham estado em contacto com alguém infetado). Os barbeiros e cabeleireiras não fazem a unanimidade dos especialistas como vetor de transmissão. No entanto, há países como o Brasil que fazem, pois lá não existe o hábito de trocar as lâminas quando se muda de cliente. Há, também, países onde os cuidados de saúde são um enorme fator de risco porque não há o hábito de descartar todo o material de assistência dos doentes. Em alguns países do Médio Oriente, os dentistas são o principal meio de espalhar a Hepatite C.
Em Portugal considera-se que no passado (antes de haver testes), as principais fontes eram as transfusões de sangue e nos últimos 25 anos são a partilha de seringas entre pessoas que injetam drogas. Acredita-se (mas ainda faltam alguns estudos para confirmação definitiva da dimensão do problema) que os homens que passaram pela guerra colonial são, também, um potencial grupo de risco e, por isso, devem ser sujeitos a testes de diagnóstico.
RX – Quais são as faixas etárias mais predominantes?
HL – Todas as faixas etárias são passíveis de serem contaminadas. Desde o ato de nascimento em que uma mãe infetada pode contaminar o bebé, até à pessoa de idade avançada que contacta com o vírus, por exemplo numa viagem de férias ao estrangeiro em que necessita de ir ao dentista de urgência num desses países onde o material de estomatologia não obedece às regras de higiene em voga na Europa. Mais do que idades deve-se falar em comportamentos de risco que podem conduzir à infeção.
RX – Que cuidados devem ter?
HL – Deve-se dividir a questão em dois grupos: aqueles que sabem não ser portadores de hepatite C porque, por exemplo, fizeram o teste de diagnóstico, mas incorreram num qualquer comportamento de risco. Que mais não seja para ficarem descansados devem falar com o médico assistente no sentido de conversar com ele acerca da eventual necessidade de fazer um teste, o qual não deve ser imediato ao comportamento de risco para não gerar falsos resultados negativos. Aqueles que são doentes devem tomar cuidados de não contágio, hoje bem conhecidos e rotinados para várias doenças de transmissão sanguínea como a não doação de sangue (que lhes está interdita), os contactos sexuais protegidos, não partilharem seringas e enquanto não estiver curado tomar cuidado para que a sua doença não se transmita aos que lhe estão próximos por atos negligentes.
RX – Quantas pessoas vivem com esta patologia?
HL – Neste momento, estima-se que existam, em Portugal, cerca de 60 mil pessoas com a doença, embora esse número não seja definitivo. Calcula-se que sejam mais de 60.000 e menos de 150.000, com maior proximidade ao primeiro número. Nos últimos três anos foram diagnosticadas mais 10 mil pessoas com hepatite c, para além das anteriormente conhecidas, estando a ser tratadas ou em espera de confirmação de cura 9 mil e curadas outras 9000 pessoas. Atualmente, o grande desafio é garantir o acesso da terapêutica a mais doentes, mas também, diagnosticar entre 30 a 50 mil pessoas que estarão infetadas e desconhecem o seu estado de saúde.
RX – Qual é a taxa de mortalidade associada à hepatite C?
HL – Além da mortalidade direta causada pela hepatite C (a qual é relativamente baixa), há todos os outros casos em que a morte tem outro nome, mas onde a hepatite C representou um fator determinante como os casos de cancro do fígado, doenças autoimunes, entre outros. Um valor de 1000 mortos por ano em Portugal não estará longe da realidade. A nível mundial estima-se que os doentes de hepatite C sejam, pelo menos, 71 milhões de pessoas e morram por ano 1,5 milhões de pessoas.
RX – O que ainda falta fazer para travar a doença em Portugal?
HL – Portugal é globalmente um país avançado no combate à hepatite C, mas ainda há passos que podem ser dados para que se consiga vencer a doença. Apesar do nosso país estar avançado, não será possível eliminar a doença até 2030, como foi definido pela Organização Mundial de Saúde. Há muito a fazer em matéria de diagnóstico. Saber onde estão os doentes, motiva-los a fazer o diagnóstico e iniciar o respetivo tratamento. Explicar às pessoas que têm medo de fazer o tratamento que hoje já não é necessário fazer a biopsia ao fígado, os tratamentos já não doem nem custam nada. Basta tomar um comprimido em jejum durante 8 a 12 semanas e depois desse período esperar 90 dias para fazer uma análise ao sangue para confirmar a cura. Se der positivo, repetir o tratamento.
Para além disto, deve-se trabalhar, também, junto da população de toxicodependentes, a mais difícil de chegar e envolver no tratamento. Houve um grande retrocesso quando se passou de um orçamento central para o pagamento dos tratamentos por via de cada Hospital. Antigamente, os tempos de espera eram mínimos, agora podem chegar aos 8 meses para se iniciar o tratamento. Formar e motivar a população em geral sobre como se proteger e procurar ajuda médica é outra frente de trabalho que pode ser melhorado em Portugal. Os programas de rastreio precoce são essenciais e Portugal ainda não tem uma estratégia apurada, sobretudo, junto da população mais vulnerável.
RX – Como é que está o nosso país comparativamente ao nível do tratamento da hepatite C?
HL – Fomos desde o início desta nova fase de tratamento um dos países mais avançados na medida em que não foram colocadas restrições ao tratamento de nenhuma pessoa, ao contrário da larga maioria dos países, mesmo entre os mais ricos. Portugal revelou-se sempre inclusivo não excluindo toxicodependentes, nem pessoas com fases menos avançadas da doença. Essa abordagem revelou-se moderna e correta e é, frequentemente, citada por outros países como um exemplo.
Abordámos também a doença com a criação de um Consenso Estratégico Nacional promovido pela Unidade de Saúde Pública da Universidade Católica em 2014, onde todos os grandes intervenientes na hepatite C participaram e cujas conclusões marcaram de forma indelével o que a seguir se veio a fazer: registo nacional de doentes, orçamento centralizado, ausência de restrição de fase metavir para o tratamento, entre outras iniciativas. Importa agora não perder o avanço que ganhámos, coisa que se começa a verificar, desenvolvendo rastreios, formações e literacia das populações, envolvimento de cuidados junto das populações mais complexas.
<< É um projeto totalmente colocado ao serviço da comunidade, gratuito para qualquer pessoa ou organização interessada na eliminação da Hepatite C. >>
RX – Em que consiste o projeto “Let’s End HepC – Vamos Eliminar a HepC”, que já está a funcionar em Portugal?
HL – O “Let’s End HepC – Vamos Eliminar a HepC” (LEHC) é um projeto de investigação científica no qual se pretende criar uma ferramenta que permita escolher conscienciosamente as políticas de Saúde Pública vocacionadas para a hepatite C de modo a que possam ser as melhores possíveis. Para isso, foi criado um modelo matemático que permite avaliar a epidemiologia da doença em cada país do projeto até 2030 e verificar nesse modelo matemático com um outro modelo estatístico o impacto de cada medida de Saúde Pública. É um projeto totalmente colocado ao serviço da comunidade, gratuito para qualquer pessoa ou organização interessada na eliminação da hepatite C.
Neste momento, já está a funcionar em Portugal e engloba mais 11 países (10 europeus e a austrália) que se quiseram juntar a este projeto. Há mais cinco outros países candidatos a entrar no projeto que aguardam capacidade para os receber. No simulador criado, qualquer pessoa, mesmo não sendo especialista pode encontrar as principais políticas de saúde pública focadas na hepatite C e com elas testar aquilo que seja a sua escolha, vendo o que aconteceria se fossem adotadas. Com isto, pretende-se disponibilizar aos decisores, mas também, às Associações de doentes e outras intervenientes, uma ferramenta de melhoria de escolhas técnicas e políticas. Qualquer pessoa pode, ainda, encontrar no site alguns dos principais indicadores relacionados com a hepatite C em cada país do projeto, bem como, comparar resultados de diferentes países.
RX – Quais são as expectativas futuras para este projeto?
HL – Desenvolver uma ferramenta útil a todos os interessados na eliminação da hepatite C, pelo menos, na escala europeia contribuindo, assim, com e para a eliminação desta doença até 2030. Esperamos continuar a desenvolver a ferramenta ao longo deste e dos próximos anos, acrescentando novas funcionalidades e mais países, tornando-o numa das ferramentas internacionais de referência.
Tratamentos para hepatite C em fases mais precoces e mais de dez mil doentes curados
Mais de dez mil doentes com Hepatite C ficaram curados nos últimos três anos com os medicamentos antivíricos de ação direta. Desde que foi aprovado o primeiro medicamento de nova geração, foram realizados 20367 tratamentos no Serviço Nacional de Saúde, segundo dados da Plataforma Hep C do Infarmed, números que ultrapassaram as primeiras estimativas de 13 mil doentes em dois anos.
A percentagem de sucesso mantém-se elevada (96,6%), tendo ficado curados 10664 doentes dos 11041 que já tiveram resultados após o tratamento. Atualmente existem oito medicamentos distintos. Os mais recentes permitem tratamentos de menor duração – oito semanas em vez das habituais 12 – e que têm melhores resultados para os genótipos 2 e 3, com taxas de cura inferiores. Neste momento existem outros medicamentos em avaliação.
Dois anos e meio do início do tratamento universal e gratuito destes doentes, verifica-se que os doentes estão a ser tratados em fases cada vez mais precoces da doença. Segundo dados do Infarmed, 57,3% dos doentes em tratamento em 2015 encontravam-se em estádios avançados da doença, com fibrose grave e fibrose severa ou cirrose
Por Rita Rodrigues