“É tão importante o diagnóstico atempado e a correção da ferropénia como a investigação da sua etiologia”
De acordo com os resultados do estudo EMPIRE, 20% dos portugueses adultos sofrem de anemia, mas 84% desconhecem que são afetados por esta condição. Em 52,7% dos casos, a anemia é causada por défice de ferro. Segundo Filipa Paramés, este é um problema de saúde pública para o qual todos devemos estar atentos. Do laboratório para o consultório, a embaixadora da anemia da Sociedade Portuguesa de Patologia Clínica recomenda que o diagnóstico não esteja centrado apenas na anemia, mas também na ferropénia e nas causas que estão por detrás dos défices de ferro. Leia aqui a entrevista.
Raio-X (RX) – Quais são os parâmetros laboratoriais que definem uma anemia?
Filipa Paramés (FP) – A definição de uma anemia baseia-se em parâmetros do hemograma, nomeadamente, a hemoglobina e outros parâmetros de avaliação do próprio eritrócito, como o volume globular médio, a hemoglobina globular média, a hemoglobina corpuscular e o RDW. Tudo isto vem referido em inúmeras diretrizes, nomeadamente, na Norma de Orientação Clínica (NOC) que a Direção-Geral da Saúde (DGS) publicou em 2015. Uma anemia pode ser causada por défices – uma anemia adquirida por défice de ferro, de vitamina B12, de ácido fólico, por exemplo – ou pode ser uma anemia hereditária ou que surge como consequência de outras doenças. A anemia ferropénica, (causada pelo défice de ferro) representa mais de 50% dos casos de anemia e pode ser rastreada através de parâmetros laboratoriais como o hemograma, os reticulócitos, a ferritina e a saturação da transferrina.
RX – É uma situação comum na população portuguesa?
FP – Em 2016 foi publicado um estudo pioneiro em Portugal, o estudo EMPIRE, conduzido pelo Anemia Working Group e que teve como objetivo fazer a avaliação epidemiológica da anemia em Portugal continental. Verificou- -se que 20% dos portugueses em idade adulta têm anemia, que 84% deles não sabem que têm anemia e que, em mais de 50% dos casos, a deficiência de ferro é a causa da anemia. Este é, sem dúvida, um problema de saúde pública, também consequência da falta de consciencialização dos profissionais de saúde. Importa reforçar que não basta só diagnosticar a anemia, os cuidados de saúde devem procurar prevenir a doença e preservar a saúde. Se diagnosticarmos e tratarmos a ferropénia, conseguimos prevenir a evolução para a anemia. Existem estudos que provam que a ferropénia é uma patologia por si só, tem sinais, sintomas e consequências, bem como agravamento do prognóstico e da qualidade de vida de vários grupos de risco – nomeadamente grávidas e doentes com insuficiência cardíaca. É uma doença que deve ser tratada precocemente. A anemia é a expressão de uma ferropénia que se arrastou, sem ser devidamente tratada, e acabou por evoluir para um estado mais grave. A Sociedade Portuguesa de Patologia Clínica foi reativada este ano como uma sociedade independente de médicos patologistas clínicos e formou vários grupos de trabalho – um deles o grupo da Hematologia – que está agora muito atento a este tema.
RX – Considera que há uma desvalorização da ferropénia por esta não ser ainda um estado de anemia?
FP – Enquanto patologistas clínicos seguimos doentes não apenas num momento, mas ao longo de vários períodos das suas vidas. Neste seguimento percebemos que são solicitados os parâmetros adequados para fazer diagnóstico da ferropénia mas, com o passar do tempo, assistimos a um agravamento como se esta tivesse passado despercebida. O diagnóstico que podia ter sido feito previamente, só é realizado numa fase mais avançada da doença, já com o aparecimento da anemia.
RX – É fácil corrigir uma ferropénia ou/uma anemia?
FP – Há várias apresentações diferentes de terapêutica oral. É sempre uma terapêutica longa. E há situações em que os doentes são intolerantes à terapêutica oral, mas já existem alternativas. Existem terapêuticas endovenosas que se destinam maioritariamente a doentes portadores de doenças crónicas inflamatórias, como doenças renais ou doenças inflamatórias intestinais – têm grandes dificuldades na absorção e utilização de ferro (ferropénia funcional). O controlo adequado da doença de base deve ser feito a par e passo com a vigilância das suas eventuais consequências. Nestes doentes, deve ser feito regularmente o doseamento da ferritina e das saturações de transferrina no sentido de identificar se há ou não défice deste nutriente. Em qualquer doente com uma ferropénia ou com uma anemia ferropénica é tão importante o diagnóstico atempado e a sua correção, como a investigação da etiologia da mesma. Existem sub-grupos importantes, por exemplo, uma criança em desenvolvimento tem necessidades aumentadas, bem como uma grávida ou uma pessoa com DII com défice de absorção. Mas existem outras situações, como é o caso de uma pessoa com uma hemorragia ou com doença hemolítica, em que podem ser necessários outros cuidados. Se for um doente vegetariano nós pensamos de imediato que tem défice de nutrientes. Se for um homem que tenha uma dieta mediterrânea normal e que não tem perdas de sangue, então é muito improvável que tenha um défice nutricional.
RX – De que forma a Patologia Clínica pode contribuir para o controlo da anemia?
FP – No lado do laboratório, o patologista clínico tem o dever de ser ativo na investigação contínua da anemia ou ferropénia. Temos de estar atentos e ser capazes de reconhecer este problema numa fase precoce e adequada, daí a importância de existir uma uniformização de critérios e conhecimentos. A Sociedade Portuguesa de Patologia Clínica tem uma atitude ativa e disponível para trabalhar com os parceiros adequados de forma a atingirmos o maior número possível de pessoas.