“Temos de dar qualidade aos anos de vida que ganhamos”
Envelhecer com qualidade é o desejo de todos nós. Afinal, de pouco serve viver mais, se não for para viver fisicamente saudável e com uma cabeça arrumada. Na realidade, a grande conquista do século XX – o aumento da esperança média de vida – está a revelar-se o grande desafio do século XXI. “A Medicina Ocidental tem de se adaptar e, face à predominância da doença crónica, o verbo curar tem de ser acompanhado pelo verbo cuidar”, afirma Júlio Machado Vaz que, no passado dia 21 de março foi o moderador de uma conferência organizada pela Astellas sobre “Medicina Humanizada: longevidade ou envelhecimento?”.
“Na clínica, o que as pessoas nos referem é uma grande preocupação com a qualidade do seu envelhecimento. Querem viver mais, com certeza, mas querem envelhecer bem”, afirma o psiquiatra e sexólogo em entrevista ao Raio-X. “E essa é a nossa grande ambição: à quantidade de vida que, gradualmente fomos conseguindo acrescentar, oferecer qualidade de vida”, sublinha.
Em Portugal, no que respeita à longevidade, temos uma realidade que compete com qualquer país do mundo, no entanto, em relação à qualidade dos últimos anos de vida, o mesmo não se verifica.
Aliás, estudos recentes revelaram que o número de anos após a reforma que as pessoas vivem com qualidade é significativamente mais baixo em Portugal do que nos países da Europa Central ou do Norte.
Na perspetiva de Júlio Machado Vaz, o envelhecimento é muito mais do que a idade que consta no cartão de cidadão, até porque, “há indivíduos na casa dos 60 anos que estão em melhor forma do que outros na casa dos 40”. Portanto, “não se trata de velhice, de terceira idade, trata-se de envelhecimento, de um processo, não de um estado”.
É certo que a genética tem um grande peso neste processo de envelhecimento, mas também o têm as experiências de vida, os esforços, o acompanhamento de saúde que cada um recebeu. Segundo o especialista, “há também uma grande influência das políticas de saúde e sociais”. Não é por acaso que as classes económica e socialmente mais desfavorecidas são também as que apresentam maiores preocupações em termos de saúde. A diabetes, a obesidade, o tabagismo são doenças que afetam mais frequentemente pessoas que apresentam um enquadramento socioeconómico mais frágil. “Lutar contra estas desigualdades deve ser o objetivo de todos nós e, sobretudo, de quem define as políticas de saúde”, defende Júlio Machado Vaz.
Medicina humanizada na era da tecnologia
Na semana em que foram publicadas notícias sobre a possibilidade de implementação da telemedicina no nosso serviço de saúde, parece paradoxal falar em humanização da Medicina mas, para o psiquiatra, uma coisa não invalida a outra. “Se um doente tem consultas com o seu médico de três em três meses, não vejo qualquer problema em ter, nesse intervalo, um ou mais contatos por via da telemedicina”, justificou. “O que não pode acontecer é a telemedicina substituir a consulta. Não nos podemos aproveitar destas tecnologias para abrimos mão daquela que é a nossa verdadeira função”, alertou.
Júlio Machado Vaz defende que a tecnologia é muito bem-vinda à Medicina, no sentido em que, além de avanços nos campos do diagnóstico e terapêutica, permite facilitar e encurtar processos burocráticos, libertando o médico para que passe mais tempo com os seus doentes. “A relação médico-doente acaba de ser proposta como património imaterial cultural da humanidade. Precisamente nesta altura em que tudo parece tão tecnológico”, comentou.
O reforço da humanização da Medicina associada ao envelhecimento surge num contexto em que a doença crónica tomou o lugar da doença aguda, infeciosa, aquela que mais matava até há algumas décadas. “Temos de juntar o verbo cuidar ao verbo curar”, sublinha.
As doenças que matam estão relativamente controladas no mundo Ocidental. Ficaram as doenças que moem. As que perduram ao longo dos anos, as que nos acompanham no envelhecimento. “E é aqui que entra o cuidador informal. Não é um curador, não é um médico. É na maior parte das vezes um familiar, que também ele precisa de ser cuidado”.
De acordo com o psiquiatra, “os profissionais de saúde têm de aprimorar ainda mais as suas capacidades relacionais e a sua capacidade de funcionar em rede porque a Medicina tem, necessariamente, de estar articulada com os serviços de psicologia, sociais, comunitários. É no terreno que as pessoas vivem”.
O desafio é adaptar a Medicina Ocidental às populações envelhecidas, às doenças crónicas. “Temos de dar qualidade de vida aos anos que ganhamos. O desafio é esse”.
Por Cátia Jorge