“Permanecemos reféns de políticas públicas que tardam em reconhecer o valor social dos Cuidados Paliativos”
O mais recente Relatório do Observatório Português dos Cuidados Paliativos divulgou alguns dados considerados preocupantes, que revelam a necessidade de mais recursos humanos para esta área. Em entrevista ao Raio-X, Duarte Silva Soares, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, comenta o cenário dos cuidados paliativos em Portugal e os principais desafios neste contexto.
Raio-X (RX) – Segundo o Relatório, um médico integrado num serviço de cuidados paliativos dispõe de um a nove minutos por dia para cuidar de cada doente e o tempo alocado dos psicólogos e dos assistentes sociais ao doente, embora um pouco maior, também é reduzido. Na sua opinião, estes são dados preocupantes?
Duarte Silva Soares (DSS) – Importa, em primeiro lugar, saudar o empenho do Observatório Português de Cuidados Paliativos em investigar e acompanhar o desenvolvimento dos serviços de Cuidados Paliativos em Portugal, uma área onde as fortes carências a nível de recursos humanos é reconhecida por todos, com impacto direto na vida das pessoas com doença avançada, assim como das suas famílias.
Mais do que a média de tempo alocado a nível global, que é preocupante mas que não reflete os bons exemplos de muitas equipas, importa sobretudo entender a mensagem que o relatório em questão traduz para a população em geral: Existe uma necessidade legitima e urgente de contratação de recursos humanos, formados e capacitados para prestar cuidados de elevada complexidade técnica quanto humana, e isso sente-se na vida das pessoas.
Ainda que amplamente presente nos discursos dos decisores-chave, este investimento tarda em traduzir-se no terreno, defraudando as legítimas expectativas de utilizadores, cuidadores, famílias e profissionais. Creio que é esta a mensagem que nos deve fazer refletir sobre o caminho que estamos a seguir.
RX – Atualmente, quais os principais desafios dos Cuidados Paliativos em Portugal?
DSS – Infelizmente, Portugal encontra-se muito longe das metas exigidas a nível internacional, independentemente das instituições que assumamos como referência, sejam elas a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Associação Europeia de Cuidados Paliativos (EAPC) ou até a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Com taxas de acessibilidade persistentemente abaixo dos 30%, o principal desafio mantém-se na necessidade de investimento dedicado à criação de novos serviços, sobretudo na comunidade, devidamente estabelecidos com o que de melhor existe em qualquer sistema de saúde, os recursos humanos. Numa área onde a humanização de cuidados e a relação humana são fundamentais em garantir cuidados que marquem positivamente o decurso da doença, minimizando o sofrimento, permanecemos reféns de políticas públicas que tardam em reconhecer o valor social dos Cuidados Paliativos.
Mas os desafios não terminam por aqui. Mesmo como um forte investimento por parte do Estado, o caminho não estará concluído. Precisamos entender que é à sociedade civil que compete assumir-se como elemento indispensável ao cuidado. Todos podem contribuir.
Maior capacitação no ensino pré-graduado, maior envolvimento da saúde pública, expansão a áreas onde ainda não chegamos, tais como a demência, a pediatria ou a saúde mental, são objetivos claros e a curto prazo. Assim como a valorização e respeito pelo cuidador informal, ou a aposta no voluntariado em torno dos doentes, a reabertura dos cuidados à comunidade – passando do atual “hospital centrismo” ao “paciente centrismo” – e o inevitável reforço dos laços de compaixão no apoio aos mais vulneráveis. Todos estes são desafios que se apresentam de forma clara, mas poderia continuar.
Nenhum destes objetivos será atingido se não rompermos os “tabus” culturais em terno da doença, do sofrimento e da morte. Se não modernizarmos a mensagem em torno aos Cuidados Paliativos. Se não encontrarmos novas formas de “dar voz a quem cuida” (campanha APCP 2019), chegando com mais impacto particularmente às gerações mais jovens.
RX – Faz sentido abrir mais Serviços de Cuidados Paliativos num futuro próximo ou é preferível consolidar primeiro os existentes com o aumento de recursos, inclusive humanos?
DSS – A estratégia a adotar compete sobretudo a quem detém o poder executivo, com a responsabilidade inerente ao exercício da função. Assistimos a várias promessas, a renovadas estratégias, a novas expectativas, mas pouco se alterou no terreno nos últimos quatro anos. Ainda assim, celebramos os êxitos atingidos.
Na minha opinião, as opções que coloca não são mutuamente exclusivas. As necessidades que nos são reportadas no terreno, o desamparo social em que muitas pessoas se encontram, a carga de sofrimento a que estão sujeitas… devem fazer-nos pensar que, existindo disponibilidade financeira para tantos outros assuntos que preocupam os portugueses, o investimento nos cuidados aos que mais sofrem têm que ser prioritário. O mais urgente de resolver. Com mais recursos humanos e mais equipas. Temos capacidade para recuperar o tempo perdido e não podemos esperar mais.
RX – O que se deveria/poderia fazer para melhorar este cenário?
DSS – Estou cada vez mais convencido de que os decisores devem colocar-se próximos dos prestadores e recetores de cuidados. Devem dialogar muito de perto com os profissionais, técnicos, académicos e investigadores no terreno, cujo conhecimento e informação a reportar é fundamental para a mudança de paradigma. Mas devem também ouvir com muita atenção as entidades representativas de doentes e cuidadores, transformando a forma como planeamos os serviços, passando das decisões absolutamente verticais a que assistimos para uma forma mais horizontal, circular e integrada – onde a opinião de todos conta. E deve contar sobretudo o entendimento que os doentes e cuidadores têm sobre os serviços que lhes prestamos. Reconheçamos o nosso paternalismo, adotemos novos comportamentos para aprender com os verdadeiros especialistas no impacto que a doença e o sofrimento têm – as pessoas doentes e as suas famílias.
RX – No global, qual a sua opinião sobre os dados divulgados no Relatório?
DSS – Merecem o meu o máximo respeito e atenção. As entidades independentes, tais como o Observatório, devem ser encorajadas a executar a sua missão da melhor forma possível. Com este entendimento, todos sairemos beneficiados.
Por Marisa Teixeira