“O investimento no diagnóstico atempado permitirá uma intervenção mais célere na prevenção da doença”
No âmbito do VIII Congresso Científico da Associação Nacional de Laboratórios Clínicos (ANL) – que decorrerá de 29 a 30 de maio no Centro de Congressos de São Rafael, Algarve – o Raio-X entrevistou Nuno Saraiva, presidente da ANL, e Manuel Carvalho, presidente da Comissão Científica. O programa desta reunião disciplinar, bem como as preocupações e os constrangimentos atuais da Medicina laboratorial foram alguns dos assuntos em foco.
Raio-X (RX) – Quais os principais temas em destaque nesta 10.ª edição do Congresso da ANL, tanto a nível científico e laboratorial, como em termos políticos e de gestão?
Nuno Saraiva (NS) – Procurámos – a exemplo de congressos anteriores e de acordo com o espectro transversal nas diferentes áreas da nossa atividade – focar temas que pela sua atualidade e/ou inovação interessam abordar e debater, aproveitando a oportunidade de reunir um elevado número de operadores do setor.
Nesse sentido, na vertente da gestão, naturalmente, estará sempre presente a discussão aberta de temas políticos de fundo, como a opção entre serviço com gestão pública vs. serviço privado ou de gestão privada e respetivas perspetivas positivas e negativas de cada uma das opções. Iremos também abordar assuntos como a desmaterialização da prescrição médica, publicidade e deontologia.
Manuel Carvalho (MC) – Na vertente mais científico-técnica iremos abordar temas como o aumento da eficácia da resposta em estudos microbiológicos, deteção e classificação de células, doenças autoimunes e anemias (prevalência e diagnóstico). Procuraremos, também, ser um meio de divulgação de alguma da investigação científica que se realiza em Portugal nesta área, com uma sessão onde um grupo de investigadores irá apresentar o seu trabalho e resultados, assim como um espaço alargado para apresentação de trabalhos sob a forma de comunicações livres e pósteres. Sendo muitos destes assuntos relativamente recentes na ordem do dia, terão, com certeza, impacto imediato e efetivo nas nossas estruturas.
RX – Tratando-se de uma reunião multidisciplinar, a que especialistas se destina?
MC – Destina-se a todos os profissionais e especialistas que fazem da atividade laboratorial a sua vida profissional, nas vertentes de laboratórios de Patologia Clínica/Análises Clínicas, Anatomia Patológica e Genética.
RX – Quais as principais preocupações atuais no contexto da Medicina laboratorial?
MC – A principal preocupação para com a comunidade é a de contribuir com nosso conhecimento e tecnologia para uma cada vez melhor saúde individual e coletiva (nas vertentes preventiva, de diagnóstico, de prognóstico e de monitorização de terapêuticas). Do ponto de vista da gestão dos nossos laboratórios, a principal preocupação é a de conseguir o equilíbrio entre uma constante necessidade de acompanhar a leges artis e a retribuição auferida pelos atos praticados.
RX – Numa altura em que tanto se fala dos constrangimentos financeiros e do baixo investimento na saúde, a área das análises clínicas e dos testes de diagnóstico sofre também com esta realidade?
NS – Sofre. É importante recordar o contexto e evolução dos últimos anos ao nível da política de preços do setor, respetivo enquadramento na atual conjuntura e análise dos riscos associados para os Associados e, por extensão, para os trabalhadores destes. De facto, os preços de referência – nomeadamente os praticados pelas ARS, depois de congelados – nem sequer acompanhando os índices de inflação – durante muitos anos, sofreram cortes substanciais (na ordem dos 20%) aquando do período da Troika. Ora, poderia pensar-se que, após a retoma, a normalização da política de preços (em alta) ocorresse. Porém, ao contrário do que seria expectável, não só tal não ocorreu, como nos continuou a ser pedido um esforço de redução de preço (a acrescer ao que já havia ocorrido), vigorando à data um “desconto” de 3%.
A gravidade desta situação é ainda mais alarmante se tivermos em conta que, por outro lado, são dados sinais de retoma, designadamente, com reposição de regalias (como seja a semana das 35 horas) ou incrementos salariais, pelo setor público que connosco concorre diretamente. Ao que acresce, também, de forma relevante, o incremento de custos estruturais, como sejam valores de rendas e de imóveis. Tudo isto gera aquilo que se pode chamar de “tempestade perfeita”, que afeta inevitavelmente a sustentabilidade (ou falta dela) de operadores do setor e do próprio setor. Acreditamos que o investimento privado no setor já sofreu decréscimo em relação àquele que ocorreu no passado. Com isso, naturalmente, o maior penalizado é o utente dos serviços de saúde.
RX – Estudos revelam que as análises clínicas e os testes laboratoriais contribuem em 70% para a confirmação de um diagnóstico, contudo, esta área representa apenas 2% do investimento feito em saúde. Consideram que estão subvalorizados?
NS – Sem dúvida. Os dados são objetivos e demonstram a quem queira ver o que é claro: dever-se-ia fazer uma planificação de gestão dos recursos afetos ao setor a médio/longo prazo, pois o investimento no diagnóstico atempado permitirá uma intervenção mais célere na prevenção da doença e, inevitavelmente, na poupança com a despesa, a jusante, com o tratamento da mesma. Acreditamos que no futuro deveria haver um valor percentual relativo superior para o diagnóstico e inferior com o tratamento, em que a soma da despesa com os dois fosse inferior ao total atual e em que houvesse menos doença e mais saúde.
RX – E a população tem noção do valor das análises clínicas?
MC – Se a pergunta é se reconhecem a importância da nossa atividade para a sua saúde, a resposta é sim. Esta afirmação é sustentada pela procura crescente dos nossos serviços e na credibilidade dos nossos resultados. Se a questão se reporta ao custo inerente aos exames por nós realizados, então a resposta é não.
NS – Face à existência dos sistemas de assistência na saúde o utente final, por regra, não paga (diretamente) a maior fatia do valor do serviço prestado. Ora, deste forma e automaticamente desvaloriza toda a cadeia de valor que está por detrás do resultado apresentado. De notar que é uma cadeia de valor com tecnologia e equipamentos de ponta, em instalações que têm de cumprir um apertado conjunto de condições e, sobretudo, com profissionais altamente qualificadas.
RX – Neste congresso está prevista uma mesa de debate, moderada por um jornalista de saúde, sobre o setor privado vs. o setor público. Qual a posição da ANL em relação a esta questão?
NS – Embora entendamos que os operadores privados são, por natureza e de acordo com as evidências disponíveis, os melhores capacitados para a gestão do serviço, consideramos que deverão sempre coexistir harmoniosa e coerentemente os dois setores. Numa ótica de representantes dos empresários e investidores no setor privado e independentemente das decisões políticas, das suas motivações, méritos ou deméritos, importa-nos exigir informação clara e atempada de quais as perspetivas a médio-longo prazo para que, em conformidade, se possa dimensionar o investimento ou desinvestimento no setor. Naturalmente, estamos cientes de que, caso venha a existir o desincentivo ao investimento privado, sairá inevitavelmente prejudicado o SNS (no qual aquele é ator essencial) e, essencialmente, os beneficiários daquele, utentes diários dos laboratórios de análises clínicas privados.