“É crucial evitar as graves consequências secundárias ao tratamento inadequado do AVC”
Com base nos resultados de um inquérito realizado junto de 868 sobreviventes de AVC, a Portugal AVC alertou para o impacto que a atual crise sanitária está a causar na prestação de cuidados de saúde aos afetados por esta doença. Consultas adiadas e exames cancelados são algumas das principais consequências deste período no qual também se verificou, de acordo com os dados recolhidos, a interrupção da prestação de cuidados de reabilitação em 91% dos doentes com indicação para este tratamento. A propósito destes resultados e possíveis repercussões para os doentes, o Raio-X falou com António Conceição, presidente da Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos.
Raio-X (RX) – Perante os resultados deste inquérito – a mostrarem que apenas 15% dos inquiridos mantiveram as consultas de seguimento de forma habitual e com 66% a referirem o seu adiamento sem possibilidade de teleconsulta – considera que foram descurados, ou colocados em segundo plano, durante este tempo, a prestação de cuidados aos doentes afetados por AVC?
António Conceição (AC) – O que nos dizem estes números é que os sobreviventes de AVC, de uma maneira geral, certamente tiveram tratamento idêntico a muitas outras pessoas com consultas programadas neste período da pandemia: adiadas na sua grande maioria, com atendimento por teleconsulta numa minoria de casos. O que não pode, ou não deveria ter acontecido, é o tratamento por igual de situações necessariamente diferentes. Por exemplo, uma consulta de rotina de doente com situação aparentemente estabilizada, ou as consultas de seguimento de um AVC ainda recente, com um quadro, inclusive a nível psicológico, que ainda carece desse acompanhamento próximo, não podem ser tratadas da mesma forma. Mesmo em relação à hipotética teleconsulta, e usando um outro exemplo, os médicos especialistas em Medicina Física e Reabilitação certamente que não consideram que é absolutamente dispensável a presença do doente em muitos casos.
RX – Quais são as principais consequências para estes doentes da interrupção dos programas de reabilitação?
AC – É fundamental que se consciencialize, antes de mais as pessoas com responsabilidades de decisão nesta área, da grande importância que os cuidados de reabilitação têm nesta patologia (indiscutivelmente considerada, antes de mais entre nós, sobreviventes de AVC, o nosso principal “medicamento”). A começar logo pela fase subaguda, tem que se perceber que cada semana de espera ou de paragem, não deixará de afetar significativamente a funcionalidade recuperada e a qualidade de vida potencial. Ao serem significativamente afetados durante esta pandemia, é deveras preocupante porque tem consequências desastrosas na vida dos sobreviventes de AVC, levando a diminuição da sua integração sociofamiliar e, eventualmente, profissional, com custos incalculáveis para o bem-estar físico e mental de todos os envolvidos, e mesmo financeiro, inclusive do próprio Estado.
RX – Neste inquérito realizado junto dos sobreviventes de AVC procuraram também perceber qual o efeito desta pandemia para o seu estado geral de saúde. Quais foram as principais conclusões obtidas? Quais foram os principais efeitos e preocupações manifestadas por estes doentes?
AC – Cerca de um terço referiu sentir-se pior ou muito pior relativamente ao seu estado geral de saúde, com a situação gerada pela pandemia. Percentagem que sobe para 44% entre os que habitualmente beneficiavam de cuidados de reabilitação e atinge os 50% nos sobreviventes que sofreram AVC há menos de um ano. A maioria dos inquiridos referiu sentimentos de maior nervosismo e/ou ansiedade, queixas de maior dificuldade na movimentação e/ou comunicação, de maior preocupação relativamente à recuperação e mesmo ao risco de ter um novo AVC. É ainda de salientar que 38% dos inquiridos referiu que a situação atual está a ter repercussões negativas na sua economia familiar.
RX – Nesta fase em que está a ser planeada a forma de regresso dos serviços de saúde quais os principais pontos que devem ser considerados nos cuidados de reabilitação para os sobreviventes de AVC?
AC – É imperativo o investimento na expansão, readaptação e reorganização dos cuidados de reabilitação do AVC em Portugal, tanto a nível hospitalar bem como extra-hospitalar, com uma interligação que privilegie a proximidade entre as diversas entidades envolvidas, nunca esquecendo que a qualidade deve estar sempre presente. Ou seja, é essencial encontrar estratégias que permitam uma reabilitação eficaz, coordenada e multidisciplinar, e que os cuidados não voltem a sofrer interrupção, no caso de ser necessário novo confinamento. Porque é crucial evitar as graves consequências secundárias ao tratamento inadequado do AVC, uma doença com mortalidade e incapacidade superiores à infeção por COVID-19 e que tem em Portugal uma prevalência particularmente elevada.
RX – De que forma, no cenário atual de pandemia, a Portugal AVC se tem mantido próxima dos sobreviventes de AVC – também considerados como um grupo de risco?
AC – Exigiu de nós uma atenção redobrada, e a diversificação, ainda maior, das formas de estar presentes. Até porque, a maioria de nós, integram o tal grupo de risco: somos sobreviventes de AVC também! Mas os pilares do que vem sendo a nossa atuação, mantêm-se muito válidos. Antes de mais, a informação, que como sempre queremos rigorosa e acessível. Também acerca do coronavírus, e das suas eventuais implicações connosco, atingidos já por uma patologia cerebrovascular. E também o reforço da sensibilização, que é dirigida aos cidadãos.
Depois, sermos voz dos sobreviventes e cuidadores. Este mesmo inquérito, a abrangência que o mesmo teve, e a divulgação das conclusões, quer nos media, quer junto das autoridades, são um bom exemplo.
Ao mesmo tempo, a ajuda mútua que está na nossa génese. Por um lado, temos que continuar a dar resposta, um conselho, uma palavra amiga, a quantos se nos dirigem. Por outro, não sendo viável a realização dos encontros (por norma, mensais) dos Grupos de Ajuda Mútua que temos a funcionar em mais de 10 localidades, rigorosamente do Minho ao Algarve, criamos o GAM Portugal: com cada um em sua casa, de realização quinzenal, têm sido acolhidos com assinalável sucesso estes encontros virtuais. Desenvolvemos também subsídios que temos à disposição de todos: por exemplo, múltiplas formas de fazer exercício em casa, pensadas para sobreviventes de AVC.