“Como a esclerose múltipla pode incluir mobilidade reduzida, a probabilidade de o doente não conseguir chegar ao WC a tempo é mais elevada”
A esclerose múltipla (EM) é uma doença que já acarreta um enorme peso e, por vezes, deixa pouco espaço para pensarmos em algumas das suas condições associadas, embora limitem a vida de um doente da mesma forma que a própria EM. No âmbito do Dia Nacional da Pessoa com Esclerose Múltipla, o Raio-X falou com Ricardo Pereira e Silva, urologista no Hospital de Santa Maria, que abordou o impacto da incontinência urinária (IU) nestes doentes.
A incontinência urinária é um sintoma comum em doentes com esclerose múltipla?
As disfunções do aparelho urinário inferior, no geral, são muito comuns nos doentes com EM e podem afetar até perto de 80% dos doentes de ambos os sexos. A incontinência urinária é o sintoma mais paradigmático, na medida em que acarreta geralmente o maior impacto na qualidade de vida das pessoas afetadas. O normal controlo do aparelho urinário inferior requer total integridade de um complexo sistema que inclui o sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal). A EM é uma doença desmielinizante, o que significa que existe perda da camada de mielina que reveste os neurónios, prejudicando a normal condução nervosa. Esse é o mecanismo através do qual surgem os sintomas, incluindo a incontinência urinária. Esta ocorre geralmente no contexto de bexiga hiperativa (caracterizada por episódios de urgência miccional, ou seja, vontade súbita e incontrolável de urinar), que pode levar a perda de urina em grande quantidade, por vezes com esvaziamento total da bexiga.
Qual o impacto da IU nestes doentes?
Tanto nestes doentes especificamente com em todas as pessoas que sofrem de incontinência urinária, o impacto é frequentemente devastador. Para além do evidente prejuízo da autoimagem, existe frequentemente uma restrição das atividades realizadas em contexto social, familiar ou mesmo laboral por o doente se sentir desconfortável com a possibilidade de perder urina e as outras pessoas se aperceberem desse facto. Os doentes necessitam de utilizar métodos de contenção da urina (pensos ou fraldas) com elevados custos associados e que potenciam também a ocorrência de complicações locais como dermatites e infeções. Como a EM pode incluir mobilidade reduzida, a probabilidade de o doente não conseguir chegar ao WC a tempo no contexto dos episódios de urgência miccional é também mais elevada.
De que forma se pode prevenir?
Quando a EM é o principal fator causador da incontinência, o adequado controlo da doença de base (EM em si) é a melhor forma de evitar o desenvolvimento de incontinência urinária. A ingestão de líquidos nas alturas do dia mais apropriadas (quando o doente está em casa ou tem acesso mais fácil ao WC) é uma forma de minorar as perdas, ainda que a eficácia desse tipo de estratégia seja limitada.
Como realizar o diagnóstico neste contexto?
O diagnóstico inicial da incontinência é clínico e feito mediante as queixas do doente. Deverá depois ser efetuada uma investigação detalhada (incluindo estudo urodinâmico completo do aparelho urinário inferior), desejavelmente no âmbito de uma consulta especializada de Neuro-urologia, de forma a caracterizar a disfunção do aparelho urinário.
Quais os tratamentos disponíveis?
Quando se constata a presença de bexiga hiperativa enquanto causa provável da incontinência, o tratamento deverá ser dirigido a esta. Numa primeira fase é utilizada terapêutica médica em comprimidos; quando esta é ineficaz, a injeção de toxina botulínica na bexiga ou a implantação de um neuromodulador de raízes sagradas são opções viáveis. De notar que, por vezes, para além da bexiga hiperativa, o esvaziamento da bexiga também não é normal (sendo a micção difícil ou com esvaziamento incompleto). Nestes casos, a implantação de um neuromodulador pode permitir o tratamento de ambas as disfunções em simultâneo (bem como de incontinência anal quando esta coexiste com a urinária).
É importante sensibilizar os profissionais de saúde para a IU associada à esclerose múltipla?
O trabalho de consciencialização sobre este problema pode e deve ser levado a cabo não só junto da população em geral (no fundo para que os doentes estejam aptos a reconhecer o problema e a procurar tratamento), mas também dos profissionais de saúde. Ainda existe algum desconhecimento e tendência para desvalorização deste sintoma em detrimento de outros, ainda que o impacto na qualidade de vida seja indiscutível.
Por Marisa Teixeira