O desejo de abraçar sem medo… e sem cancro
Desde o final de 2018 que Licínia Martins luta contra o cancro. E já vai na segunda batalha. O Raio-X foi conhecer um pouco desta história, que se cruza no tempo com uma outra que ficará para a História, a pandemia de covid-19.
Licínia, mais conhecida por Cina, tem hoje 60 primaveras e foi-lhe diagnosticado um cancro da mama em dezembro de 2018. A primeira consulta no IPO de Lisboa foi no mês seguinte e iniciou a quimioterapia em março de 2019. Seguiu-se a cirurgia, uma mastectomia total, fisioterapia e radioterapia. Entre tratamentos e consultas, foi um processo que se desenrolou até junho de 2020.
“No início da pandemia, quando fui ao hospital, parecia um filme de ficção científica”, descreve Cina. “Fazia-me muita confusão ver as pessoas com as máscaras, as viseiras, os fatos. E ninguém sabia quem era perigoso, se podíamos estar a ser infetados pelo senhor do lado, que metia a máscara abaixo do nariz ou no queixo porque já não conseguia respirar… Sentia-se medo”. E esse medo refletia-se em cada momento, em cada gesto. “Toda eu era álcool gel, até na roupa e na máscara cheguei a colocar, tinha mesmo muito receio.”
Ao contrário do que esperava em fase de pandemia, não houve atrasos de maior. A principal diferença que notou – depois dos tratamentos feitos – foi a comunicação passar a ser por telefone. “Não ver o médico provocava-me insegurança e esquecia-me de metade das coisas que queria dizer”, conta, lembrando a ansiedade que se instalava quando “tentava ligar para o IPO e as linhas estavam sempre ocupadas”. Sensação que perdurava no tempo, enquanto esperava pela reconstrução mamária.
No entanto, “o mais angustiante era entrar sozinha no hospital”, destaca, referindo que ainda hoje “é das coisas que mais custa”. Hoje, porque a sua luta contra o cancro ainda não acabou.
Uma luta longa e intensa
“Fui fazer exames de rotina e uma ecografia mamária revelou algo na outra mama. Caiu-me tudo ao chão”, lamenta, com a voz embargada. Ficou a saber que era “um cancro menos agressivo do que o primeiro”. Desta vez, foi primeiro operada para remover o tumor e em simultâneo reconstruiram-lhe a mama direita.
Embora, “desta vez, felizmente, sem quimioterapia”, o caminho não tem sido fácil. “Tive de ser novamente submetida a cirurgia, pois o meu corpo estava a rejeitar a prótese e formou uma pequena necrose… esperemos que seja desta”.
Sempre se considerou uma pessoa positiva, mas “ninguém está preparado”. Quando foi inicialmente diagnosticada, o primeiro impacto foi a negação. “Eu não estou a viver isto, amanhã vou acordar e está tudo bem. Afastamos toda a gente.” Depois, as dúvidas. “Porquê eu? Se Deus existe e se sempre fui crente, porquê? Mas se sempre foste crente, por que não és agora? E esta dualidade dentro de mim manteve-se durante muito tempo.”
Fisicamente o que mais custou a Cina foi a quimioterapia. E também psicologicamente, pelas marcas que deixou. “Olhas para o espelho e não te reconheces… o cabelo ralo onde ainda há algum, a pele já não é igual, ficou mais flácida, enrugou. Envelheci. E nunca tive problemas com isso, mas foi assustadoramente rápido. E de repente perceberes que o risco nos olhos já não dá para fazer porque a pálpebra não está como antes, que a tua cor de batom favorita não te fica bem. Parece insignificante, mas custa. A roupa não assenta bem, as unhas esfarelam … tudo isto mexe muito cá dentro.”
A par disso, a tentativa de mostrar a familiares e amigos que está tudo bem. “Rio, brinco, e os que me rodeiam ficam mais tranquilos. Isso dá-me alguma paz, porque ao não deixar que fiquem angustiados também não fico tanto.” E aos poucos foi ganhando mais forças. “Mas naqueles dias piores, em que não conseguia controlar as náuseas, a dor, coisa nenhuma em mim, lembro-me de adormecer a dizer: Deus me ajude, Deu me cure…e a chorar. Também tive momentos desses.”
Virar as costas à raiva
Quando surge o diagnóstico do novo cancro, Cina confessa que “foi muito duro”. “Desta vez, senti raiva. Comecei a ‘mandar pedras para todo o lado’, fui agressiva com algumas pessoas. Decidi afastar-me para não magoar ninguém. Felizmente, já consegui recuperar e voltar mais a mim, mas há dias muito complicados.”
Quando a chamam de guerreira por estar a lutar contra o cancro, admite ter vontade de rir, por não se sentir nada assim. “Não somos guerreiros, vamos ao sabor da onda. Se não tivermos à nossa volta aqueles amigos que não desistem de nós – mesmo quando nos afastamos, mesmo quando a Covid nos obriga a afastar –, e se não tivermos a nossa família, aquela que nos apoia todos os dias… é muito difícil passar por isto sozinho.”
Cina tem-se agarrado à sua fé, acredita em Deus, “a força divina que nos põe de pé e que traz até nós as pessoas certas nestes momentos”. “Foi preciso passar por tudo isto para ter a certeza de quem são os verdadeiros amigos, mesmo entre os familiares. Aqueles que ultrapassam tudo para me dar nem que seja um segundo de força. Esses é que são os verdadeiros guerreiros.”
“É um desafio todos os dias”, sublinha. E justifica: “Um desafio para sair da cama, para tomar banho, para me vestir… para fazer algo. E nos últimos tempos nunca quero que a noite chegue, porque é o fim de mais um dia em que as coisas ainda não foram resolvidas. É esquisito”.
A pandemia agravou tudo para Cina, principalmente pela ausência de pessoas e de abraços. “Perguntaram-me no IPO se queria acompanhamento psicológico… recusei. Só quero poder voltar a receber os meus amigos em casa, poder beijá-los e abraçá-los sem medo de um vírus.”
Até chegar lá, o dia em que vai deixar as idas constantes aos hospitais, o dia em que o cancro o vai fazer parte definitivamente do passado, o dia em que vai dar abraços sem medos, Cina vai continuar a desafiar-se e a acreditar, porque apesar dos momentos mais difíceis, continuará a seguir em frente.
E remata, deixando uma mensagem a todos os que passaram ou estão a passar por um a situação semelhante: “Se caírem, levantem-se. Não tenham vergonha de chorar e de pedir ajuda. Um dia de cada vez. Não somos guerreiros, mas juntos vamos vencendo pequenas batalhas. Sejamos gratos todos os dias por tudo o que vamos alcançando. Força e fé.”
Por Marisa Teixeira