Reportagem no Serviço de Reumatologia do ULSLA | “Sinto-me muito apoiada por parte dos colegas e isso deixa-me mais à vontade e confiante nas decisões terapêuticas e nos cuidados a ter com os doentes”
Entrevista realizada em fevereiro de 2022
Até 2017 os doentes do Litoral Alentejano não tinham acesso à especialidade de Reumatologia na sua área de residência e, por isso, deslocavam-se ao Algarve ou a Lisboa. Em abril desse ano foi criado um protocolo de colaboração entre o Hospital de Santa Maria (HSM) – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) – e a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano (ULSLA) e os doentes deixaram de ter que se deslocar, “no entanto, o tempo de espera para uma primeira consulta era de dois anos o que não é muito aceitável para este tipo de patologias”, segundo Ana Valido, reumatologista na ULSLA.
Entre 2015 e 2020, Ana Valido fez o internato de Reumatologia no Hospital de Santa Maria (HSM), Centro Hospitalar Lisboa Norte e durante o seu internato deslocou-se várias vezes à Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano (ULSLA). “Os doentes desta área, até 2017, não tinha acesso à especialidade de Reumatologia nesta unidade de saúde, tinham por isso que se deslocar a Lisboa ou ao Algarve. Em abril desse ano foi celebrado um protocolo de colaboração entre o HSM e a ULSLA e uma vez por mês, normalmente à 2.ª feira, um especialista de Reumatologia, acompanhado de um interno, deslocava-se à unidade para consultas. Eram vistos cerca de 20 doentes – 10 para o interno, 10 para o especialista. Acabei por ter oportunidade de vir diversas vezes e, foi nesse sentido, que comecei a conhecer a experiência de um hospital periférico e que comecei a ter noção das dificuldades e das diferenças que existiam sobretudo em comparação com o HSM”, explicou a especialista. Ainda que este protocolo tenha facilitado o acesso à especialidade, a reumatologista revelou que nem sempre era fácil o acesso às consultas “o tempo de espera para uma primeira consulta era de dois anos o que não é muito aceitável para este tipo de patologias. E para consultas subsequentes os doentes esperavam cerca de 6/9 meses o que, neste tipo de consultas não é justificável, visto que têm de fazer avaliações analíticas frequentes para monitorização não só da atividade da doença, como também da terapêutica”.
Volvidos três anos, em novembro de 2020, a ULSLA abriu vaga para a especialidade e Ana Valido não pensou duas vezes “quando abriu a vaga, concorri e acabei por me fixar cá no Alentejo. É uma zona litoral que eu adoro. O dia a dia aqui é muito tranquilo, não há transito, não há parquímetros, é uma zona que me transmite muita tranquilidade. Sou de Cascais e não escolheria outro lugar que não fosse a zona litoral que me dá uma enorme satisfação a nível pessoal e a nível profissional”. Atualmente divide o seu dia a dia entre consultas, técnicas de ecografia e atividade no hospital de dia. “Faço todos os dias primeiras consultas e consultas subsequentes de Reumatologia geral, não faz sentido dividir em especialidades sendo que sou a única reumatologista. Às quartas-feiras dedico-me à Unidade de Técnicas de Reumatologia na cirurgia de ambulatório com o apoio de uma enfermeira, onde fazemos infiltrações articulares, peri articulares, biópsias de gordura abdominal e de glândulas salivares, ecografia músculo esquelética e também outros procedimentos ecoguiados. No que toca ao hospital de dia, que está integrado no Hospital de Dia de Oncologia, é lá que fazemos as perfusãos endovenosas, com o apoio das enfermeiras, que sejam necessárias para doentes que fazem esse tipo de terapêuticas. Os outros doentes que fazem terapêuticas biológicas subcutâneas acabo por seguir em consultas externas normais. Acabo depois por ter um período para fazer as triagens dos doentes e elaborar os relatórios clínicos”.
Duas realidades distintas
Quando questionada sobre a mudança do HSM para o Litoral Alentejano, a reumatologista referiu que são realidades muito dispares “vim de um serviço onde existiam imensos especialistas dedicados às diferentes patologias – como lupus, vasculites, espondilartrites -, onde tínhamos também uma unidade de técnicas onde se faziam ecografias por pessoas especializadas na área e os doentes reumáticos tinham uma zona exclusiva de internamento, o que permitia um acompanhamento personalizado do doente”. Atualmente, na ULSLA, não tem um espaço próprio, divide-se entre as diferentes áreas da unidade e é a única especialista de Reumatologia da instituição. “Sou a única reumatologista aqui, mas felizmente fiquei com uma boa relação com os colegas de HSM – diretor de serviço, especialistas, assistentes – que são muito acessíveis e disponibilizaram-se logo para me apoiar nesse sentido. Sempre que tenho dúvidas com algum doente acabo por discutir com eles e já aconteceu encaminhar para uma observação lá – consultas de miosite, por exemplo – e o doente acaba por ser avaliado lá e depois mantem o seguimento aqui comigo. Sempre que tenho doentes assim mais graves ou que necessitem de procedimentos mais complicados, acabo por conseguir redirecionar para o HSM, para o Hospital Garcia de Orta ou para outros. Acabo por estar sozinha, mas não é isso que sinto porque tenho sempre alguém com quem discutir nem que seja por telefone ou e-mail”. No que toca à multidisciplinaridade, Ana Valido assume que é uma lacuna que sente ao trabalhar diariamente na unidade “as doenças reumáticas são multissistémicas e, por vezes, temos de discutir com os colegas de Pneumologia, de Nefrologia ou de Dermatologia e, na ULSLA, não temos estas especialidades. Temos a Pneumologia, a Ortopedia e a Medicina Interna, mas tudo o resto temos de discutir via telefone com os colegas do Hospital de Évora ou do Hospital de Setúbal. E, embora o acesso seja fácil e, se existir necessidade, logo no dia a seguir o doente é observado por eles, é muito mais demorado do que se tivéssemos tudo concentrado no mesmo espaço físico”. Contudo, a reumatologista revelou ser muito apoiada pelas outras especialidades que existem na ULSLA como a Ortopedia e a Medicina Interna “acabo por ter um grande suporte das outras especialidades aqui do hospital. Conto muito com o apoio da Medicina Interna que me ajuda caso tenha de internar um doente e também da Ortopedia, que me ajuda na resolução de algum caso mais complicado, se for do foro reumatológico. Sinto-me muito apoiada por parte dos colegas e isso deixa-me mais à vontade e confiante nas decisões terapêuticas e nos cuidados a ter com os doentes”.
Nesta região, que conta com uma área de referência de cerca de 100 mil habitantes, as patologias mais frequentes são a artrite reumatoide, o lúpus, as vasculites e as miosites. “No que toca às diferentes patologias reumáticas, aqui no Litoral Alentejano acabo por lidar com um pouco de tudo. Existem muitos doentes com artrites reumatoides que, infelizmente, pelo difícil acesso aos Cuidados de Saúde Primários (CSP), acabam por chegar num estado de deformidade articular que já não é aceitável hoje em dia. Também são aqui seguidos doentes com lúpus, vasculites, miosites, entre outras patologias. Consigo manter atividade em todas as áreas da Reumatologia, no entanto, infelizmente, não tenho capacidade de avaliar aprofundadamente todas as doenças reumáticas e, portanto, as doenças reumáticas não inflamatórias acabo por avaliar, mas não manter seguimento em consulta porque é um volume de doentes muito grande e não se consegue manter esta abordagem a todos”, concluiu Ana Valido.
Articulação com os Cuidados de Saúde Primários
A ULSLA está neste momento a otimizar a articulação com os CSP. “Estamos a criar protocolos de referenciação para os CSP de modo a que esta seja feita de forma mais precoce. Se assim for, o diagnóstico e a instituição terapêutica são realizados também de forma mais eficiente o que proporcionara uma melhor qualidade de vida e uma melhor abordagem da saúde do doente”. A especialidade de Reumatologia no Serviço Nacional de Saúde (SNS) no Litoral Alentejano não existia de forma tão permanente como atualmente e, segundo Ana Valido, “muitos doentes acabavam por ser referenciados para Lisboa ou para o Algarve e, na maioria das vezes, não se deslocavam para irem às consultas de três em três meses e também não aderiam à terapêutica o que se refletia em agudizações das doenças e numa grande dificuldade de tratamento à posteriori”.
Planos para o futuro
A especialista revela ter ainda muitos planos para o futuro, no entanto, assegura que continuar a trabalhar nesta unidade é uma certeza. “Quero muito continuar a trabalhar aqui e pôr em prática todos os planos que temos para o futuro. Numa primeira fase é muito importante a aquisição de mais especialistas de Reumatologia com o objetivo de melhorar a qualidade de atendimento e a oferta de consultas aos doentes reumáticos desta área de residência. É fulcral desenvolvermos consultas de subespecialidade – lupus, miopatias inflamatórias, artrite reumatoide – para conseguirmos proporcionar uma avaliação e um cuidado mais detalhado aos nossos doentes nessas consultas. Com isto conseguiríamos também diminuir o tempo de espera de primeiras consultas, bem como das consultas subsequentes. Para além disto conseguimos também realizar vários tipos de técnicas que não dispomos atualmente”. Para além desta vertente, Ana Valido assegurou que também é um objetivo da Reumatologia desta unidade “a formação de internos de formação geral, de Medicina Interna, de Medicina Geral e Familiar e de Reumatologia. Para além disto está também em desenvolvimento a promoção de reuniões mensais com colegas da especialidade de forma a otimizar o contacto dos casos urgentes”.