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Isabel do Carmo | Uma vida dedicada à Medicina e à Luta pela Liberdade

Isabel do Carmo | Uma vida dedicada à Medicina e à Luta pela Liberdade

Foi na sua casa, em Lisboa, que Isabel do Carmo nos recebeu para partilhar connosco algumas memórias marcantes do seu percurso. Hoje, 50 anos após o 25 de abril, a médica endocrinologista recordou os tempos enquanto ativista política na luta contra a ditadura – atividade que conciliou sempre com a prática profissional – “nunca me desliguei da profissão porque, verdadeiramente, gosto de ser médica”, partilha.

O facto de ter nascido no Barreiro (no ano de 1940), é o ponto de partida para esta história pois este “era um meio muito contra o regime do Estado Novo, tal como a família que me rodeava”, con­ta a Prof.ª Doutora Isabel do Carmo. Aos 10 anos, pela inexistência de liceus na cidade onde nasceu, vai para Setúbal, onde estuda durante cinco anos “na úni­ca turma mista a nível nacional, mas em todo o distrito de Setúbal não havia alu­nos suficientes para fazer duas turmas”, recorda. A este período somaram-se dois anos no Liceu Maria Amália, em Lisboa, onde completou o antigo 7.º ano. É de­pois disto, com 17 anos, que ingressa na Faculdade de Medicina de Lisboa. Sobre esse período recorda que, na altura, “não havia especialidade de Endocrinologia, quem queria fazer esta especialidade fazia os dois anos do internato e depois entrava para Medicina Interna. Isto tem influência na minha atitude atual em re­lação aos doentes porque os vejo tam­bém muito numa perspetiva de Medicina Interna”.

É na Faculdade de Medicina que se liga à Comissão Pró-Associação de Medicina – a Associação tinha sido fechada pela PIDE. Este era “um grupo grande, aberto e onde conheci pessoas que foram ami­gos para a vida e de quem ainda hoje sou amiga” e é também neste período, aos 18 anos, em 1958, que integra o Partido Comunista Português (PCP).

As Brigadas Revolucionárias

Um marco importante na sua ação políti­ca foi a criação das Brigadas Revolucio­nárias, em 1973. A primeira organização com uma mulher na direção. Nesta con­versa, Isabel do Carmo relembra qual o contexto que se vivia na altura e os motivos que conduziram à criação desta organização: “em 1969, quando já estava no PCP, formaram-se as Comissões Democráticas Eleitorais, aproveitando o período de liberdade eleitoral para concorrer às eleições legis­lativas e onde houve muitas comissões e grande troca de ideias”. No entanto, apesar deste clima de aparente abertura política, “chegámos às eleições e, mais uma vez, foi uma falcatrua e não aconte­ceu nada. Havia já a convicção profunda nas pessoas que lutavam contra o regi­me, e mesmo nas outras, de que não era possível alterá-lo em termos eleitorais. Dentro do PCP havia uma grande pressão para existirem ações armadas e que só dessa forma poderíamos derrubar o re­gime”, recorda a endocrinologista acres­centando que a isto se somava o contex­to da Guerra Colonial que decorria já há oito anos e “sem qualquer perspetiva de acabar”.

É em 1970, quando está em Paris a reali­zar um estágio, que conhece o Carlos An­tunes – funcionário do PCP e com quem viria a formar as Brigadas Revolucioná­rias. “Eu insisti muito na ideia de que era necessária a ação armada e, a certa al­tura, o Carlos Antunes deixou-se infiltrar pelas minhas ideias deslocando-as para o organismo onde estava e para o meio do Partido Comunista, nomeadamente numa reunião ampla com o Álvaro de Cunhal. Aí as posições do Carlos Antu­nes já eram muito fortes em relação a esta via para a luta armada tendo acaba­do por se afastar do partido”. Foi então, nesta sequência e com esta convicção forte, que os dois regressam a Portugal – o Carlos Antunes de forma clandestina – e formam as Brigadas Revolucionárias.

As ações das Brigadas Revolucionárias foram, sobretudo, “contra a Guerra Co­lonial, em estruturas militares, focando as bases de armamento. A primeira foi numa estrutura da NATO, na Fonte da Telha, depois foi nos camiões berliet, em centros militares, quartéis”, lembra Isabel do Carmo. A mé­dica endocrinologista reaviva ainda uma ação realizada pelas Brigadas Revolu­cionárias no Ministério das Corporações (antigo Ministério do Trabalho), na Praça de Londres, e relacionada com as con­dições do trabalho: “eu fui lá localizar o sítio onde se podia colocar a bomba, entrei pelo Ministério como se não fosse nada comigo e escolhi o local”. A última ação das Brigadas Revolucionárias foi pouco tempo antes do 25 de abril ten­do estado uma ação planeada para maio que já não chegou a acontecer dada a queda do regime.

Prisão política

Num clima de grande re­pressão como o que era vivido no nosso país, Isabel do Carmo, ainda antes do 25 de abril, acaba por ser presa pela PIDE. “Na pri­meira vez em que estive presa, o pior foi o isola­mento, que é terrível. A cela tinha uma janela, mas a janela dava para um muro e em cima do muro passeava um soldado. Ti­ravam tudo às pessoas, inclusivamente o relógio, não sabemos a que horas estamos, não há livros, não há nada. Para mim, foi terrível”.

Na segunda vez, a prisão surge na sequência do assassinato pela PIDE do estudante universitário Ribeiro Santos, em 1972, numa reunião contra o colonialismo nas insta­lações de “Económicas” – atualmente Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). “Isto foi um acontecimento brutal ao nível estudantil. Foi uma questão muito forte e fizemos na Ordem dos Médicos um comunicado a constatar o que tinha acontecido. Fomos todos que decidimos e redigi­mos, 29 pessoas, mas fui eu que fiz o manuscrito. A PIDE assaltou a Ordem dos Médicos, revistou tudo e encontrou o meu manuscrito, identificou a minha letra e eu fui presa”. No momento da prisão a médica endocri­nologista recorda que “ia com a minha filha ao colo para a levar ao jardim es­cola e apareceram. Entre­guei a minha filha ao pai e fui com eles”. Todos os envolvidos na elaboração do manuscrito foram interrogados, no entanto, após ler os interrogatórios, a Prof.ª Doutora Isabel do Carmo constatou “que ninguém me denunciou e eu acho isto uma maravilha, fico muito contente. Mesmo com o medo que tinham, e tinham muito, disseram que tinha sido decidido por todos”. Dessa vez recorda que houve uma grande mo­vimentação de apoio tendo o seu diretor do Hospital de Santa Maria, Ducla Soares, ameaçado que ou a liberta­vam ou entravam em greve no Hospital, tendo sido libertada com o pagamento de uma caução.

O último período de prisão tem a duração de quatro anos e acontece em 1978. Lem­bra esse momento como “controverso porque não fui nem condenada, nem ab­solvida, nem perdoada, nem amnistiada. Simplesmente, ao fim de um certo tempo, puseram-me em liberdade por excesso de prisão preventiva. Quando fui buscar o registo criminal para voltar ao hospital não vinha nada escrito. Porque não exis­tia nada, mas foram quatro anos”. Durante todo esse tempo em que esteve presa esteve acompanhada pelo filho que tinha, na altura em que foi presa, oito meses.

Após este período de prisão retomou então em força a atividade na Medici­na, voltando ao Hospital de Santa Maria, fazendo consultório e dedicando-se ao doutoramento.

25 de abril de 1974

No por si tão aguardado dia em que cai a ditadura, Isabel do Carmo estava na clandestinidade na sequência dos acontecimentos na Capela do Rato (uma ação de protesto e um momento marcante da contestação ao regime que ocorre em 1972) – “o meu nome foi falado e eu tive de ir para a clandestinidade”.

Assim, em 25 de abril de 1974, a médica endocrinologista está no Porto e recorda que foi “fantástico. Então para quem está clandestino é uma alegria poder voltar a fazer uma vida normal”. Conta que “tínha­mos uma tipografia clandestina na Maia e era um camarada meu que fazia a ligação. Ele aparece na casa onde eu estava e diz «houve um golpe de Estado, um movimen­to militar e derrubaram o governo». Ainda estive umas horas no Porto, depois, no dia seguinte, vim para Lisboa. Fui escrever no comunicado que as ações armadas acaba­vam agora era a Liberdade!”

Depois do 25 de abril recorda que teve um ano e meio de intensa atividade política: “tinha um jornal semanário, o Revolução, de que eu era diretora, e andava na rua em manifestações. Foi um período extraordi­nário onde foi muito importante que as pessoas de baixo, os mais pobres, tives­sem falado – esse é, para mim, o grande fenómeno daquele ano e meio após o 25 de abril: as pessoas ganharam dignidade, capacidade de serem gente”.

Em 2004, Isabel do Carmo foi condecorada pelo Presidente da Repú­blica Jorge Sampaio com o grau de grande oficial da Ordem da Liberdade, a mais alta condecoração atribuída aos cidadãos que contribuíram para democratizar Portugal.

O papel da escrita

Além do ativismo político, a vida de Isabel do Carmo tem também sido preenchida pela escrita, sendo autora de inúmeros livros. Nesta conversa, desta­ca quatro sobre três temas distintos: Nu­trição, COVID-19 e política.

“Alimentação: mitos e fatos” e “Gordu­chos e redondinhas” estiveram este ano na Feira do Livro de Lisboa. O primeiro, de 2020, surge mesmo depois de a endo­crinologista decidir “que não ia escrever mais sobre Medicina e Nutrição porque as pessoas são tão permeáveis aos dispara­tes que veem na internet que já questiono o meu papel, mas depois achei que era um dever”. Assim, foi escrito durante a pande­mia e aborda um tema que desperta bas­tante interesse para a médica “que é des­montar o pensamento mágico que existe na internet, em que correm pensamentos pseudo-científicos, sem qualquer base, a dizerem o que fazem bem ou mal e, mui­tas vezes, com publicidade oculta a alguns suplementos naturais”. “Gorduchos e re­dondinhas”, de 2012, foi escrito em cola­boração com várias pessoas com as quais Isabel do Carmo tinha a Plataforma de Luta Contra a Obesidade da DGS e centra-se na obesidade infantil e juvenil. “Vejo que na Feira do Livro as pessoas têm uma certa relutância em com­prar este livro. Talvez por ser “Gorduchos e redondinhas” não querem assumir que os filhos são gorduchos e redondinhos”, brinca.

Em outubro de 2023, é lançado o livro “Síndrome do Covid Longo”. A médica en­docrinologista relata ter sido “muito toca­da” por esta doença, além de a própria ter tido, motivo pelo qual esteve internada, o seu ex-marido e outro amigo muito próxi­mo morreram pela infeção por COVID-19. “Cerca de duas semanas depois de ter alta comecei a dar consultas e comecei a ver pessoas com aquilo que hoje é designado como Covid longo. Sob o ponto de vis­ta de explicação fisiopatológica é muito interessante porque explicado está, mas medicação não há. E há muitas pessoas que se queixam de sintomas que são en­quadrados nisto. Li muito para fazer este livro, fi-lo com prefácio de Filipe Froes, e espero que tenha sido útil pelo menos para as pessoas pensarem que não são um caso anormal”.

“Três Ditaduras na Europa Ocidental. His­tórias de vida até 1974” é o mais recen­te livro publicado pela especialista, em março deste ano. “Este é um livro que eu tinha necessidade de fazer. Levei cerca de cinco anos a fazê-lo porque tem uma par­te sobre Portugal, outra sobre Espanha e outra sobre a Grécia. Trabalhei muito para fazer isto porque coordenar três autores é complicado. Estudei muito a respeito das ditaduras, mas sentia-me na obrigação de o fazer”. É um livro que através de entrevistas a pessoas nascidas nos anos 40/50 retrata a vida nestes três países durante a ditadura.

A paixão longa pela Medicina

“Nunca me desliguei da profissão porque, verdadeiramente, eu gosto de ser médica”, afirma a médica endocrinologista que con­ta que “mesmo no período revolucionário, em que andava na rua, eu ia fazer uma vez por semana consulta ao Barreiro”. Também durante os períodos de clandestinidade os livros técnicos de Medicina acompanha­ram-na: “umas das últimas casas onde eu estive deixei lá o livro do Cecil, que era a nossa “bíblia” e no outro dia houve uma colega minha que mo veio trazer ao consul­tório. E quando estive presa em Custóias também houve o pai de um colega meu – que era uma pessoa de direita e que na Ordem dos Médicos se tinha oposto muito a nós – que me enviou, desta vez, o livro do Harrison”. Também na prisão, sempre que necessário intervinha como médica.

“Gosto de ver doentes. Continuo a ver mui­tos por semana e acho que se deixasse de ver doentes perdia a minha fonte de inspi­ração, perdia muito se deixasse de os ou­vir”, conclui a especialista.

Assista ao vídeo da entrevista