Teremos hoje melhores serviços de urgência após 40 anos do SNS?
Antecedendo o 5º Congresso Nacional de Urgência da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), que se realizará de 11 a 13 de outubro, o Raio-X partilha um artigo de opinião, da autoria de Maria da Luz Brazão, internista e coordenadora do Núcleo de Estudos de Urgência e do Doente Agudo da SPMI, que reflete a evolução da urgência nos 40 anos do Serviço Nacional de Saúde.
E o 5º Congresso Nacional de Urgência da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) está aí, este ano com o tema (Re)Pensar a urgência nos 40 anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este congresso, da responsabilidade do Núcleo de Urgência e do Doente Agudo (NEUrgMI) da SPMI, vai decorrer em Portimão, sendo presidido por Faustino Ferreira e tendo como secretário geral Nuno Bernardino.
A sua realização anual com rotação por vários pontos do país foi logo de início um dos objetivos do NEURgMI, que desta forma quer envolver todos na procura de soluções para as urgências em Portugal.
Mas de facto não podemos pensar o futuro sem repensar o passado, por isso nos dias 10 e 11 de outubro arrancamos com vários cursos que achamos irem ao encontro das necessidades formativas de todos os que fazem urgência, e pelas 16 horas do dia 11 iniciamos a atividade científica com um workshop de melhoria contínua para chefias de serviços de urgência, no qual se pretende abordar os desafios na gestão destes serviços, seguindo-se a cerimónia e a palestra de abertura com o tema “a história dos serviços de urgência nos 40 anos do SNS”. O congresso termina no final da manhã de dia 13 com a cerimónia de encerramento “40 anos de SNS: Criamos um SNS Urgenciocêntrico?”
Mas afinal o que mudou nos últimos 40 anos do SNS relativamente à urgência, e que levou ao caos a que assistimos atualmente nos serviços de urgência por todo o país?
Se formos um pouco mais atrás e fizermos uma avaliação temporal desde os anos 60, deparamo-nos com uma realidade muito diferente da atual.
Nos anos 60, os serviços de urgência eram chefiados por cirurgiões, o que se justificava uma vez que nessa altura as urgências eram, na sua maioria, de índole traumática ou emergências cirúrgicas. As doenças de um modo geral tratavam-se em casa pelos “João Semana” e quando gravemente doentes, o próprio generalista ambulatório levava pessoalmente o doente à urgência e passava-o ao colega. Estes cirurgiões discutiam eletrocardiogramas com os médicos.
Nos primeiros anos do SNS (anos 70), tivemos talvez o melhor modelo de serviço de urgência de todos. Liderava quem tinha o perfil ideal independente da especialidade, cada um exercia a competência na sua especialidade e o chefe de equipa geria conflitos e, se necessário, exercia a autoridade (existia uma verdadeira autoridade delegada). Logo de seguida, quando a cirurgia abandonou voluntariamente este papel, as especialidades médicas exerciam-no com prazer e os internos iam para as urgências, porque lá estavam os seus chefes. Mas lentamente todos foram abandonando o serviço de urgência a troco de qualquer prevenção da sua especialidade, paga a preço igual ou superior, com metade do trabalho… tendo lá ficado os internistas, que herdaram vários constrangimentos agravados pela crise de 2008:
- Um défice grave de pessoal, com encerramento de urgências por todo o país: o capital humano das urgências não parou de ser reduzido, as equipas de urgência ficaram no limite e alguns hospitais ventrais sem número mínimo de internistas que garanta a idoneidade. Isto foi o início do caos nas urgências que se manteve até aos dias de hoje;
- Afluência a bater todos os recordes. Fecharam os serviços de atendimento permanente por todo o país e abriram urgências básicas que nada resolveram, assistiu-se a um aumento exponencial da afluência a montante e rapidamente nos tornamos os campeões europeus da afluência;
- Pressão de “cima” para a criação de equipas fixas. Os gestores preferem que os trabalhadores não rodem em muitos postos, porque dificulta o controlo. Médicos na enfermaria, consulta, hospital de dia, urgência e a dar aulas são difíceis de controlar e médicos só na urgência não obrigam a hipertrofia do número de médicos nos serviços de medicina;
- Tudo o que falha é falha de quem lá está. Sempre que há uma falha grave, o culpado é o médico, a atitude defensiva leva ao agravamento do tempo de permanência, aumenta as taxas de internamento e existe uma sensação de desproteção que aumenta as taxas de burnout e abandono;
- Défice de autoridade delegada. Urgência é território de todos, as especialidades começaram a não aceitar a autoridade do chefe de equipa nas decisões de internar, e este para não ser desautorizado acaba por internar para os serviços de Medicina Interna, que passaram a ter taxas de ocupação que são vergonhosas.
Tudo isto nos mostra que precisamos (re)pensar a urgência:
- Os internistas têm características ideais para o trabalho na urgência. De um modo geral, gostam de o exercer, mas necessitam de quadros adequados à procura, menor carga de trabalho no serviço de urgência, menos horas, menos doentes, menos horas extraordinárias, diversidade que satisfaça a formação multidisciplinar, reconhecimento na tarefa, e de voltar ao “Empowerment” do chefe de equipa;
- É fundamental reduzir a afluência ao serviço de urgência “INPUT”, reabrindo os serviços de atendimento permanente (com nome e horário a estudar); apostar no esclarecimento do doente que se deve tornar o gestor da sua saúde/doença; desvio dos azuis e verdes para fora do serviço de urgência; melhorar a acessibilidade aos Cuidados de Saúde Primários; maior disponibilidade da Medicina Geral e Familiar na abordagem do doente agudo e crónico agudizado; e criar novas portas de acesso ao hospital que não o serviço de urgência;
- Desbloquear o acesso ao internamento “OUTPUT”, com a criação de equipas de gestão de altas, de distribuição dos doentes internados no serviço de urgência pelas enfermarias, e de transferências e transportes.
Necessitamos urgentemente de uma nova governança hospitalar, para a qual são necessários mais internistas. De facto, não é mais aceitável haver doentes em maca num hospital com camas vagas. As fronteiras entre serviços têm de se diluir (a distribuição deve ser cama-hospital e não cama-serviço). Para além disso, cada doente deve ter o seu internista, e deve ser privilegiado o modelo de seguimento “door to door”. Assim, teremos maior satisfação dos doentes, dos profissionais e dos políticos com custos controlados.