Preparação de terapêutica farmacológica em saúde infantil e pediátrica: mais do que cálculos, um compromisso com a segurança
Artigo de opinião da autoria de André Ferreira, Enfermeiro Especialista em Enfermagem Comunitária e autor do livro “Preparação de Terapêutica Farmacológica em Saúde Infantil e Pediátrica” (LIDEL), sobre a importância da segurança medicamentosa em contexto pediátrico.
Sempre acreditei que cuidar de crianças é um privilégio – e também um dos maiores desafios da enfermagem. Ao longo da minha carreira profissional, observei com atenção o rigor e a dedicação necessários para preparar e administrar fármacos. É um trabalho onde a técnica se entrelaça com a sensibilidade, onde cada decisão exige ponderação e onde o menor detalhe pode fazer toda a diferença. Foi dessa consciência, aliada à paixão pela segurança medicamentosa, que nasceu o livro “Preparação de Terapêutica Farmacológica em Saúde Infantil e Pediátrica”.
A pediatria tem uma linguagem própria. Não basta “reduzir a dose do adulto”: cada criança é um universo único, com necessidades, capacidades e respostas fisiológicas diferentes. O corpo está em constante transformação – órgãos a amadurecer, metabolismo em mudança e uma farmacocinética que exige cálculos precisos e adaptações constantes. É por isso que, neste contexto, a margem para o erro é tão reduzida e a responsabilidade tão elevada.
Em muitos momentos, vi o que significa estar diante de uma seringa preparada com rigor, pronta para administrar um fármaco vital, e ao mesmo tempo ver que, antes de chegar à veia, é preciso chegar ao coração daquela criança – acalmá-la, ganhar a sua confiança, envolver os pais/cuidadores e explicar sem assustar. O cuidado começa muito antes da administração e prolonga-se muito depois dela. A medicação é, muitas vezes, apenas a ponta visível de um processo complexo, feito de avaliação clínica, tomada de decisão e atenção constante.
Por isso, defendo que a preparação de terapêutica farmacológica em saúde infantil e pediátrica não é apenas uma questão técnica, mas também ética e organizacional. A segurança medicamentosa depende de protocolos claros, mas igualmente de uma cultura de vigilância permanente, onde cada profissional se sinta autorizado – e obrigado – a questionar sempre que necessário. Erros de cálculo, de diluição ou de via de administração não resultam apenas de falhas individuais, mas também de sistemas que nem sempre garantem condições ideais de trabalho.
A prática diária mostra que existem áreas a melhorar: a uniformização de protocolos a nível nacional, a disponibilização de materiais e equipamentos adaptados à população pediátrica e o reforço da formação contínua especializada, que vá além da farmacologia básica e que integre aspetos práticos e comunicacionais. É essencial compreender que a administração de um fármaco não se limita ao momento em que o fármaco entra no organismo – envolve a preparação, a explicação, o conforto e o acompanhamento posterior.
Outro ponto crítico é a comunicação dentro das equipas multidisciplinares. Um cálculo correto pode ser comprometido por uma prescrição ambígua ou por uma passagem de turno apressada. A clareza na transmissão de informação é tão vital quanto a destreza manual ou o conhecimento científico.
Na minha experiência, vejo que, sempre que colocamos a criança e a sua família no centro do processo, os resultados melhoram. Reduz-se a ansiedade, aumenta-se a adesão e, sobretudo, minimizam-se riscos. Preparar uma dose correta é mais do que manipular miligramas ou mililitros: é um ato de confiança que se renova a cada administração.
No fundo, a preparação de terapêutica farmacológica em saúde infantil e pediátrica é um reflexo do compromisso que temos com a vida, a dignidade e o futuro das crianças. É um campo onde ciência e humanidade caminham lado a lado – e onde cada gesto, por mais pequeno que pareça, pode ter um impacto profundo.