Distrofia Muscular de Duchenne: “Os primeiros sintomas surgem na infância, começando habitualmente a ser evidentes entre os 2 e os 4 anos”

 No âmbito do Dia Mundial para a Sensibilização e Consciencialização da Distrofia Muscular de Duchenne, que se assinala a 7 de setembro, o Raio-X falou com Miguel Félix, coordenador da Unidade de Pneumologia Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra e Presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Pneumologia Pediátrica e Sono, para perceber que patologia é esta, quais as suas causas e consequências, a importância de um diagnóstico atempado e o que se pode fazer para melhorar a qualidade de vida dos doentes.

Raio-X (RX) – O que é a distrofia muscular de Duchenne e qual a sua prevalência em Portugal e no mundo?

Miguel Félix (MF) – A distrofia muscular de Duchenne é uma doença muscular que se caracteriza por uma degradação progressiva dos músculos esqueléticos, levando a uma diminuição da força muscular, iniciada nos primeiros anos de vida. As características clínicas da doença são na sua quase totalidade consequência dessa falta progressiva de força e incluem, entre outras: dificuldade progressiva na marcha, que acaba por se tornar impossível, deformidades posturais e osteoarticulares, falta de força dos músculos respiratórios com insuficiência respiratória progressiva, dificuldades na alimentação (deglutição, mastigação) com consequências nutricionais. Em alguns casos pode haver dificuldades de aprendizagem e de linguagem. A sua incidência global é de cerca de 1 em cada 3500 nascimentos de bebés do género masculino, que é o único género afetado.

RX – Quais as causas desta patologia?

MF – A causa da doença é genética: uma mutação localizada no cromossoma X, numa região que codifica a produção de distrofina – uma proteína necessária para a normal integridade do músculo, que acaba assim por estar ausente do músculo destes pacientes, levando à sua degradação progressiva.

RX – Quais os sinais de alerta e em que idade é mais frequente surgirem os primeiros sintomas?

MF – Os primeiros sintomas surgem na infância, começando habitualmente a ser evidentes entre os 2 e os 4 anos. O desenvolvimento motor é quase sempre normal antes dessa idade, se bem que possa ocorrer algum atraso no início da marcha. Os primeiros músculos a ser afetados pela fraqueza são os proximais dos membros inferiores. A fraqueza muscular a estes níveis manifesta-se por alterações progressivas na marcha, corrida ou subir degraus: caminham mais em pontas, de forma instável, com quedas frequentes. A criança tem muita dificuldade em levantar-se da posição de sentado ou deitado no chão, tendo que o fazer com o apoio dos braços, com o clássico sinal de Gowers. Um sinal que chama a atenção principalmente por volta dos 5-6 anos é um marcado aumento de volume dos gémeos, que se apresentam muito hipertrofiados. A fraqueza muscular progressiva acaba por levar à perda total da marcha, geralmente pelo início da adolescência, mas podendo variar desde os 8-9 anos até, mais raramente, perto dos 18. Ao longo dos anos, e de forma mais lenta, a fraqueza muscular vai-se notando progressivamente também nos membros superiores e tronco acabando geralmente por condicionar escoliose, insuficiência respiratória progressiva e podendo também dificultar a alimentação. Cerca de metade dos doentes no final da segunda década de vida têm algum atingimento do músculo cardíaco, de gravidade variável.

RX – De que forma se realiza o diagnóstico e qual a importância de o fazer atempadamente?

MF – Perante uma suspeita baseada em sintomas e sinais sugestivos, a criança deve ser referenciada a uma consulta de Neuropediatria para observação especializada. Uma característica laboratorial praticamente universal é o aumento marcado dos níveis séricos de creatinafosfoquinase. A confirmação do diagnóstico é possível na maioria dos casos pelo estudo genético, com identificação de uma mutação conhecida. Em casos, muito menos frequentes, em que este estudo não é conclusivo, a biopsia muscular pode ser valiosa. Se for efetuada a eletromiografia, permite demonstrar que o atingimento é do músculo e não dos nervos. Nos casos de gravidez de uma mulher portadora é possível o estudo pré-natal para identificação de mutações conhecidas no feto.

RX – Atualmente, quais os tratamentos disponíveis?

MF – Até à data não existe cura para a distrofia muscular de Duchenne. Os pilares do tratamento dos pacientes com Duchenne continuam ainda a ser (de acordo com os standards de cuidados mais recentes) a utilização de corticoides o mais precocemente possível e as diversas formas de fisioterapia e reabilitação. Está demonstrado que os corticoides (especialmente deflazacorte), com início de utilização precoce, logo que o diagnóstico é feito, podem retardar a idade de perda da marcha de forma significativa. É também provável, se bem que não tão claro, que possam prevenir parcialmente a degradação da função respiratória e a evolução de escoliose, quando se continuam a usar mesmo após a perda da marcha. Vários fármacos dirigidos a grupos restritos de doentes com mutações específicas estão em desenvolvimento. Alguns (p. ex. atalureno) foram já autorizados em alguns países e são usados há algum tempo, mas dirigem-se à pequena percentagem do total de pacientes com Duchenne que têm determinadas mutações.

As técnicas de fisioterapia e reabilitação são fundamentais na prevenção de contraturas e deformidades e na sua estabilização e contenção quando já existem. A utilização de técnicas de apoio respiratório, como a ventilação não invasiva e as técnicas de assistência mecânica da tosse, são fundamentais em todos os pacientes a partir de um certo ponto de evolução da doença, prevenindo e/ou tratando a insuficiência respiratória crónica com hipoventilação e as complicações da retenção de secreções por incapacidade de tossir adequadamente. O desenvolvimento destas técnicas foi o principal fator responsável pela modificação do panorama de sobrevida da doença nas últimas décadas. Se antes a maioria dos doentes não sobrevivia muito após o início da 3.ª década de vida, hoje começa a ser frequente a sobrevida bem para lá dos 30 anos de idade.

RX – Qual o papel da avaliação da função respiratória neste contexto?

MF – Os standards internacionais de cuidados respiratórios para pacientes com distrofia muscular de Duchenne explicitam claramente a importância de uma avaliação periódica da função respiratória, adaptada à fase da doença em que se encontra o paciente. Na fase ambulatória da doença (antes da perda de marcha), a avaliação por estudo de função respiratória está indicada pelo menos anualmente, desde que a criança tenha já idade suficiente para colaborar. Depois da perda da marcha essa avaliação deve tornar-se mais frequente, pelo menos semestral. A realização de estudo poligráfico do sono deve ser considerada em qualquer altura em que se suspeite de hipoventilação, que geralmente se torna mais evidente durante o sono. Todas estas avaliações são importantes, tanto no sentido de permitir detetar precocemente envolvimento respiratório, ainda antes de ser evidente clinicamente, como no seguimento da evolução do envolvimento respiratório ao longo de toda a vida do doente. Mesmo nos doentes já com diagnóstico de insuficiência respiratória e a fazer os tratamentos adequados, conhecer a evolução da função respiratória permite ajustar esses cuidados e fornece informações importantes para outras áreas, por exemplo a anestesiologia.

RX – Os profissionais de saúde estão sensibilizados para esta patologia? E a população em geral?

MF – É difícil ter uma noção exata do tipo de conhecimento que a população em geral tem sobre esta patologia, mas presumivelmente será limitado, dada a raridade relativa da doença e a sua pouca visibilidade pública, sendo por isso muito importante a realização de ações de divulgação como esta do Dia Mundial para a Sensibilização e Consciencialização da Distrofia Muscular de Duchenne. Dado que a maioria dos pacientes de Duchenne têm seguimento necessariamente multidisciplinar, é natural que haja maior sensibilidade, consciencialização e preparação para a doença, dos profissionais de saúde dos centros hospitalares em que são centralizados os cuidados a estes pacientes. Como o seguimento destes pacientes deve, no entanto, ter uma forte componente a nível de proximidade local, em colaboração com os hospitais e cuidados de saúde primários das suas áreas de residência, devem ser mantidos esforços de comunicação com essas estruturas no sentido de melhorar a forma como conhecem a patologia e podem lidar com os pacientes.

RX – De que forma se pode melhorar a sobrevida e a qualidade de vida destes doentes?

MF – Para além da utilização dos tratamentos farmacológicos e outros indicados, a melhoria da sobrevida e da qualidade de vida dos pacientes de Duchenne assenta em três bases fundamentais: a multidisciplinaridade, a complementaridade de cuidados e a transição adequada entre diferentes fases da vida.

A multidisciplinaridade é um conceito fundamental em todas idades para assegurar a melhoria da sobrevida, a prevenção de comorbilidades e a melhoria de qualidade de vida. Em idade pediátrica implica o envolvimento, entre outros intervenientes, de Neuropediatria, Pediatria (com diferenciação em pneumologia pediátrica, gastroenterologia e nutrição pediátrica, por exemplo), Ortopedia, Medicina Física e de Reabilitação, Cardiologia, fisioterapia, enfermagem de reabilitação, serviço social, cuidados paliativos e continuados, etc.

A complementaridade entre diversas realidades de prestação de cuidados é uma das bases para a qualidade de vida e melhoria global da saúde. Além dos cuidados mais diferenciados, prestados habitualmente por equipas multidisciplinares intra-hospitalares, é fundamental que todas as outras estruturas envolvidas, quer de outros níveis de prestação de cuidados de saúde quer da educação e da restante sociedade civil onde os pacientes estão inseridos, não se encontrem isoladas umas das outras, mas partilhem conhecimentos e orientações no acompanhamento dos doentes de Duchenne. Um fator que deve também ser sempre considerado como importante é a noção de cuidados de proximidade e a possibilidade de apoio domiciliário ou local.

Finalmente, deve ser assegurada de forma cuidadosa uma transição suave, apoiada e acompanhada, entre as diversas fases e realidades da vida destes pacientes. São exemplos fundamentais a passagem dos serviços de pediatria para os serviços de adultos, quando os pacientes atingem idade para tal e a transição progressiva para cuidados paliativos e de fim de vida quando se atinge essa fase. Como em qualquer processo, é nos momentos de mudança e transição que há mais fragilidades e potencial para quebra de cuidados, pelo que estes processos merecem

Por Marisa Teixeira

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