Cuidados Paliativos Pediátricos “chegaram tarde, mas têm avançado depressa”

Por ocasião do VIII Congresso Nacional de Cuidados Paliativos, realizado em Lisboa, na semana passada, Ana Lacerda afirmou, em entrevista ao Raio-X que “a referenciação das crianças para Cuidados Paliativos Pediátricos deve ser mais precoce” e não deve ser conotada com “o final de linha”. Segundo a pediatra e oncologista do IPO de Lisboa, apesar de recente, esta área tem sido alvo de grandes avanços, contudo, há ainda muito a fazer, não só no âmbito da formação dos profissionais de saúde, mas também da própria sociedade.

Raio-X – Em Portugal, os Cuidados Paliativos Pediátricos estão ainda a dar os primeiros passos. Continuam a ser desvalorizados a dor e o sofrimento na criança?

Ana Lacerda – Esta é, de facto, uma área muito recente no nosso país. Só no início de 2013 é que se começou a falar de uma forma sistemática e repetida nos Cuidados Paliativos Pediátricos. Felizmente os avanços têm sido muito rápidos, e penso que já conseguimos despertar aquelas consciências que ainda estavam adormecidas relativamente às necessidades das crianças com doenças limitantes ou ameaçadoras da vida e suas famílias. Essa desvalorização prende-se muitas vezes com uma dificuldade de aceitação, por parte dos próprios profissionais, do sofrimento, da dor e da morte, sobretudo nas crianças. Os profissionais ainda veem isso como uma derrota da Medicina Moderna. É contranatura nós aceitarmos que uma criança sofra e que possa vir a morrer. Essa é uma das grandes barreiras que, até aqui, tem limitado o desenvolvimento de soluções. Mas para mim, trabalhando em Oncologia Pediátrica, desde cedo me foi proporcionado um entendimento diferente sobre esta absoluta necessidade de integração entre os cuidados potencialmente curativos e os cuidados paliativos.

RX – Por parte da sociedade ainda é atribuído ao termo Cuidados Paliativos uma conotação de fim da linha e de falta de esperança?

AL – Tanto a sociedade como alguns profissionais de saúde encaram os Cuidados Paliativos como uma situação em que não há mais nada a fazer quando, na realidade, são muito mais do que isso, principalmente quando falamos em Cuidados Paliativos Pediátricos. Quando uma criança é referenciada para Cuidados Paliativos, isso não significa que desistimos dela. Muito pelo contrário, pretendemos ajudá-la (e à sua família) a atravessar um processo que é naturalmente doloroso com o menor sofrimento possível.

RX – Nesse contexto, há ainda muito trabalho de sensibilização por desenvolver, nomeadamente para as próprias famílias?

AL – De facto, é difícil para as famílias, aceitarem a referenciação de uma criança para uma equipa de Cuidados Paliativos e esta realidade é reconhecida a nível internacional e, por isso, recomenda-se a utilização de uma terminologia diferente. Planeamento Antecipado de Cuidados, Controlo de Sintomas, Equipas de Suporte são algumas das opções para substituir o termo Cuidados Paliativos. Na prática, o nome não será o mais importante, desde que sejam seguidos os princípios e as boas práticas daquilo que é considerado o acompanhamento de Cuidados Paliativos.

“Quando uma criança é referenciada para Cuidados Paliativos, isso não significa que desistimos dela. Muito pelo contrário, pretendemos ajudá-la (e à sua família) a atravessar um processo que é naturalmente doloroso com o menor sofrimento possível”

RX – No workshop sobre Cuidados Paliativos Pediátricos que conduziu aqui neste congresso, reforçou a importância da referenciação precoce das crianças para os Cuidados Paliativos. Qual o momento mais indicado para a referenciação?

AL – Essa é também uma recomendação internacional, que tem como objetivo que as crianças sejam avaliadas por uma equipa de Cuidados Paliativos antes de chegarem ao tal “fim da linha” ou seja, apenas quando se abandonam as opções terapêuticas potencialmente curativas. A referenciação deve sim acontecer quando se reconhece que uma criança e a sua família vão viver com necessidades de saúde complexas.

RX – Considera que ainda são escassos os recursos canalizados para os Cuidados Paliativos, comparativamente com os que são aplicados em alguma “obstinação terapêutica”?

AL – Infelizmente essa é uma realidade que também acontece na população pediátrica. Inverter esta situação é uma das missões da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP). A nível internacional, os sistemas de saúde estão a mudar. Há uma sobrevivência cada vez mais prolongada de crianças e de adultos com doenças crónicas. As pessoas vivem durante muitos anos com doenças que, no passado, causavam uma morte muito mais precoce e, nesse sentido, o paradigma tem, necessariamente, de mudar. Temos de mudar este conceito da Medicina Moderna que tem como principio a “ação-reação” e que tem levado a um consumo exagerado de recursos e a intervenções desajustadas daquilo que é o desejo dos próprios doentes e familiares. Temos de pensar num planeamento antecipado relativamente aos diversos cenários de evolução do estado de saúde de cada doente. Se esses cenários forem planeados, as ações passarão a ser mais ponderadas. Não podemos centrar os serviços na doença, no profissional ou no hospital. Temos de recentrar os cuidados na pessoa, nas suas necessidades, nas suas expectativas, nos seus desejos e nas suas preferências. Neste caso, da criança e da sua família.

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RX – Qualquer médico deve estar apto a prestar Cuidados Paliativos? Que formação devem ter nesse sentido?

AL – Sim. Qualquer médico deve estar apto a prestar esse tipo de cuidados, no mínimo a promover a abordagem paliativa da pessoa com doença limitante ou ameaçadora da vida. Mas temos ainda muito trabalho por desenvolver pois Portugal peca muito pela falta de formação pré-graduada nesta área. Não só na Medicina, como em todas as profissões relacionadas com a saúde, muito poucas escolas e faculdades contemplam a abordagem paliativa na formação pré-graduada. No entanto, neste ano letivo de 2015-2016 houve um grande avanço em Portugal que foi a criação da primeira unidade curricular opcional de Cuidados Paliativos Pediátricos na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Lisboa. Pela primeira vez, estudantes do 5.º ano de Medicina têm a possibilidade de aprenderem sobre esta área. Na mesma Faculdade, dentro da cadeira de Pediatria, há também aulas de Cuidados Paliativos. Esperamos que esteja aqui a ser criada uma tendência e que, rapidamente, esta iniciativa se replique por outras instituições de ensino em Portugal.

“A referenciação deve acontecer quando se reconhece que uma criança e a sua família vão viver com necessidades de saúde complexas”

RX – Do ponto de vista funcional, como é que os Cuidados Paliativos Pediátricos vão entrar nos hospitais?

AL – Coordenei um Grupo de Trabalho que elaborou um relatório que foi entregue ao Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, em 2014, portanto, do anterior Governo, em que foi proposto que todos os Serviços de Pediatria criassem equipas de profissionais mais atentas a estas questões dos Cuidados Paliativos Pediátricos. Essas equipas deveriam ser ajustadas à dimensão e recursos de cada Serviço de Pediatria. Os profissionais destas equipas devem ter como missão a sensibilização dos colegas para a necessidade de referenciar a uma avaliação de Cuidados Paliativos e de promover o que consideramos serem os princípios essenciais dos Cuidados Paliativos, nomeadamente as discussões antecipatórias, o planeamento de cuidados, a melhoria da comunicação com a família, a articulação entre prestadores, o controlo de sintomas, a promoção de cuidados domiciliários, entre outros. No terreno, tanto no hospital como na comunidade, estas equipas devem articular-se com as que já existem para os Cuidados Paliativos de adultos.

RX – A avaliar pela participação neste workshop, há uma grande interdisciplinaridade nos Cuidados Paliativos Pediátricos. Quais os benefícios das sinergias criadas entre profissionais de áreas distintas?

AL – De facto, participaram assistentes sociais, enfermeiros, médicos, psicólogos e esta multidisciplinaridade é muito importante, sobretudo nesta fase de implementação. Por vezes são os profissionais mais distantes da Medicina que chamam os médicos à razão, precisamente por estarem mais atentos às necessidades do doente que vão para além da componente médica e do controlo dos sintomas. Por outro lado, é também muito importante envolver os profissionais da educação. Há crianças que, mesmo em estado de saúde muito debilitado, não querem perder aulas e pretendem participar, como podem, nas atividades escolares. É preciso que os professores possam também ter formação sobre a doença da criança e sobre as necessidades especiais, até mesmo para sensibilizarem as restantes crianças da turma para a aceitação e para a integração da diferença. O envolvimento da escola é uma forma de promover a formação cívica e de alargar os horizontes das crianças.

“Temos de recentrar os cuidados na pessoa, nas suas necessidades, nas suas expectativas, nos seus desejos e nas suas preferências. Neste caso, da criança e da sua família”

RX – O que é a plataforma www.cuidandojuntos.org.pt ?

AL – Essa plataforma foi criada em outubro de 2014 pela aTTitude, uma associação sem fins lucrativos, sob orientação técnico-científica do Grupo de Apoio à Pediatria da APCP e do Grupo de Cuidados Continuados e Paliativos da Sociedade Portuguesa de Pediatria. O site está ativo com informação para famílias, para profissionais de saúde e faz um historial dos Cuidados Paliativos em Portugal. Pretendemos que se constitua uma plataforma de discussão e de entendimento para dinamizar a área em Portugal.

Cátia Jorge

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