António Vaz Carneiro: “A Medicina está obcecada com o conceito de causalidade”
“Cada tipo de estudo e de evidência tem o seu lugar no conjunto do conhecimento”, afirma o diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, que reconhece que os ensaios clínicos buscam uma relação de causalidade, enquanto os estudos observacionais correlacionam factos que, de outra forma, não seriam correlacionáveis.
Em entrevista ao Raio-X, António Vaz Carneiro aponta as evidências provenientes da investigação clínica como instrumento de apoio à decisão, contudo defende que aquela deve ser utilizada em conjunção com a experiência do médico
Raio-X- A evidência é evidente ou necessita de prova?
AVC – António Vaz Carneiro – A evidência é, na nossa língua portuguesa, aquilo que não necessita de prova, precisamente por ser evidente. A Medicina Baseada na Evidência é de facto a Medicina Baseada na Prova. Ou seja, tentámos ajustar o conceito internacional à língua portuguesa quando, há 16 anos, criámos o Centro de Medicina Baseada na Evidência. Fizemos uma tradução à letra de uma palavra que não tem exatamente o mesmo significado. De qualquer forma, creio que todos sabemos hoje que a evidência é, neste contexto da Medicina, a prova. A palavra foi adquirindo, ao longo destes anos um novo significado. Hoje, a evidência médica é aquilo que suporta a decisão clínica.
RX- E a evidência deve ser o primeiro critério na tomada dessa decisão?
AVC – Não, o primeiro critério deve ser a experiência do médico porque essa experiência capta uma realidade do doente que a ciência jamais conseguirá captar. A complexidade dos doentes, as suas características únicas, o número de doenças e de complicações que o doente tem e que impede que sejam incluídos em estudos dos quais resulta a ciência. Nenhum estudo inclui um doente com cinco ou seis doenças em simultâneo, como os doentes que temos de tratar diariamente.
RX- E que motivos estiveram na origem da Medicina Baseada na Evidência?
AVC – Sem dúvida, a explosão da quantidade de conhecimento. Nos primeiros 20 anos do século XX conseguiu-se duplicar todo o conhecimento médico-científico que até então existia. A partir dos anos 50, a produção de conhecimento em Medicina passou a ser quase uma indústria. O número de revistas científicas duplica a cada cinco anos. E, embora não haja números muito certos, publicam-se, por ano, cerca de dois milhões de artigos científicos. Por dia, publicam-se cerca de 6 mil artigos. Toda esta evidência exige uma gestão da informação e do novo conhecimento. O conceito que está por detrás da Medicina Baseada na Evidência é fornecer bons estudos que sustentem boas decisões.
“Medicina Personalizada, para já, não passa de uma ilusão”
RX- Até que ponto a prática de uma Medicina Baseada na Evidência é praticável num contexto de Medicina Personalizada? Como é que os resultados obtidos num todo são aplicáveis a um único individuo?
AVC – Temos de perceber, antes de mais, o que é um bom estudo. O que é um desenho bem feito, do ponto de vista metodológico, e o que são resultados fiáveis. Depois temos de compreender se as evidências provenientes de um estudo feito numa população de doentes norte-americanos, se ajustam ao nosso doente português, por exemplo. Não há nenhum estudo perfeito e não há nenhum estudo que nos ofereça todas as respostas que precisamos para o nosso doente. Há que saber interpretar e ajustar. Tudo isto cria uma nova forma de olhar para a Medicina. Tanto quanto possível, devemos usar a ciência de boa qualidade na gestão dos nossos doentes, mas a decisão estará sempre no médico.
Quanto à Medicina Personalizada, do ponto de vista da genómica, parece-me que, para já, não passa de uma ilusão. Todas as tentativas de identificar fatores genéticos associados a determinadas doenças geraram resultados muito modestos porque, na maior parte dos casos, as doenças são multifatoriais, ainda que tenham uma componente genética também. Estes estudos tiveram, há cinco ou seis anos, uma enorme expansão, mas agora quase que desapareceram. A Medicina Preditiva Personalizada está ainda no seu início. Não conhecemos de facto qual a contribuição do genoma na predição clínica e que tipo de estudos devemos desenvolver na Medicina Personalizada. Também não sabemos se as terapêuticas genéticas serão de facto tão promissoras como se diz e qual será o seu custo final.
“Tanto quanto possível, devemos usar a ciência de boa qualidade na gestão dos nossos doentes, mas a decisão estará sempre no médico.”
RX- Ainda no que respeita à decisão clínica, que peso têm, hoje em dia, os custos da Medicina?
AVC – Os custos são um conceito que foi introduzido recentemente. Talvez há cerca de 20 ou 30 anos. E este critério de decisão surge porque cada vez vivemos mais e cada vez mais intervencionados e muito mais “medicalizados”. Costumo dizer que a indústria farmacêutica produz os melhores produtos de que podemos dispor. O meu medicamento será sempre melhor do que os meus sapatos, o meu computador ou o meu automóvel. Os medicamentos são cada vez mais eficazes, cada vez mais seguros e tratam cada vez mais doentes com terapêuticas cada vez mais agressivas contra doenças cada vez mais graves. O problema é que os medicamentos têm custos. E também aqui, temos de avaliar as evidências pois não vamos disponibilizar aos doentes um medicamento que não deu provas de benefício no âmbito da investigação clínica.
RX- Mas há formas de “embelezar” os resultados dos ensaios clínicos?
AVC – Sim, mas estou convicto que são raros. Há truques que podem ser feitos tanto ao nível do desenho como da metodologia ou até nos critérios de inclusão dos doentes ou do tempo de follow-up que podem contribuir para resultados mais otimistas. Mas também há formas de desvendar esses truques. Em centros como o Centro de Medicina Baseada na Evidência conseguimos olhar para um estudo e perceber até que ponto a verdade que ali está descrita é ou não relevante. Para a indústria farmacêutica é importante que um medicamento cujos custos de desenvolvimento foram enormes, chegue ao mais número de doentes possível. No entanto, cabe aos médicos olharem para as evidências e decidirem se os seus doentes vão beneficiar ou não desse medicamento.
“Cada tipo de estudo e de evidência tem o seu lugar na parede do conhecimento”
RX- As revisões sistemáticas, assim como os estudos observacionais ou os registos permitem avaliar com mais rigor o efeito de determinada intervenção numa população da prática real?
AVC – As revisões sistemáticas destinam-se simplesmente a cruzar e combinar informação proveniente de vários estudos que foram realizados com o intuito de responder à mesma questão clínica. Para este tipo de revisões há regras muito rigorosas. E o que se pretende saber é, por exemplo, o efeito de um determinado beta-bloqueante na insuficiência cardíaca congestiva. Nesse caso, vai fazer-se o levantamento e o cruzamento de um conjunto de estudos em que esse beta-bloqueante foi testado em doentes com esta patologia. Estas revisões permitem-nos aumentar significativamente a amostra de doentes sem termos de fazer um estudo novo. Para tal, é importante que os estudos envolvidos na revisão não sejam muito heterogéneos.
“Os medicamentos são cada vez mais eficazes, cada vez mais seguros e tratam cada vez mais doentes com terapêuticas cada vez mais agressivas contra doenças cada vez mais graves.”
Em relação aos estudos observacionais, penso que são “criadores de hipóteses”. Prefiro um estudo observacional de alta qualidade a um mau ensaio clínico. A Medicina está obcecada com o conceito de causalidade. Se um doente tem gripe e eu lhe prescrevo um antibiótico, ao fim de três dias, o doente está curado. Logo, o antibiótico curou a gripe. Esta é a relação de causalidade. No entanto, todos sabemos que os antibióticos não matam vírus e as gripes são virais. Portanto, aquele doente ia ficar curado ainda que não tivesse tomado o antibiótico.
Todos os estudos clínicos têm como missão estabelecer uma causalidade. Nos estudos observacionais procuramos correlações. Temos um big data, ou seja, uma base de dados gigantesca de doentes em que são registados todos os dados: doenças que teve, número de internamentos, medicamentos que tomou, evolução clínica, etc. Daqui não tiramos relações de causalidade, mas sim correlações. Para mim, estes estudos são uma forma muito inteligente de descobrir a correlação entre fatores, de forma segura, e obtendo dados da vida real impossíveis de obter de outra maneira. Por exemplo, foi através dos grandes registos dos países nórdicos que conseguimos descobrir que os medicamentos biológicos utilizados no tratamento das doenças reumáticas inflamatórias aumentam o risco de tuberculose. Isto conseguiu-se cruzando dados do mesmo doente integrado em dois registos diferentes.
“Prefiro um estudo observacional de alta qualidade a um mau ensaio clínico. A Medicina está obcecada com o conceito de causalidade.”
Temos de compreender que cada tipo de estudo e de evidência tem o seu lugar no conjunto do conhecimento. Todos têm a sua validade, todos são conjugáveis e todos contribuem para um aumento do conhecimento.
Investigação em crianças e muito idosos
RX- Não é considerado ético que determinados medicamentos sejam testados em crianças em ou em pessoas muito idosas e é frequente que estas duas populações sejam excluídas da investigação clínica. Mas é ético depois trata-las, na prática clínica, com esses medicamentos?
AVC – Não temos outra hipótese. Porque não podemos deixar de trata-las. Até há 30 ou 40 anos, tudo o que sabíamos sobre Medicina tinha sido estudado em homens de meia idade. Os resultados eram, depois, extrapolados para as mulheres, para os idosos e para as crianças. Hoje sabemos que uma criança não é um adulto pequenino e que um idoso não é um adulto com mais anos. As diferenças não se limitam à idade, pelo que se concluiu que é preciso estudar essas populações. O problema é que, na prática, é tudo muito mais complicado. No caso das crianças, é muito difícil os pais aceitarem que o seu filho vai entrar num estudo em que pode receber um fármaco novo ou pode receber um placebo, com a incerteza que daqui advém. E, portanto, não temos alternativa se não fazer uma terapêutica off label, ou seja, extrapolar e ajustar os medicamentos que apenas foram testados em adultos e utilizá-los em crianças. Há áreas em que isso não representa um grande problema. Uma infeção é uma infeção e, honestamente, não me parece necessário testar medicação para uma meningite em crianças com menos de cinco anos, por exemplo. Com o cancro já é totalmente diferente e aqui sim, seria importante dispormos de mais dados em populações pediátricas. Há hoje em dia um esforço muito grande por parte das agencias internacionais do medicamento em desenvolver mais estudos nestas populações.
“Hoje sabemos que uma criança não é um adulto pequenino e que um idoso não é um adulto com mais anos. As diferenças não se limitam à idade, pelo que se concluiu que é preciso estudar essas populações.”
RX- E em relação aos idosos?
AVC – Em primeiro lugar, importa salientar que falamos de pessoas com mais de 80 anos. E aqui o problema é outro. São pessoas com muitas comorbilidades, polimedicadas, com uma esperança média de vida mais curta e nas quais não é possível fazer estudos a longo prazo. São doentes muito frágeis, com uma enorme probabilidade de mortalidade, independentemente da intervenção a que sejam submetidos. Numa amostra inicial de 300 indivíduos, eu corro o risco de chegar ao fim dos doze meses de estudo com uma amostra de 100. Como é que podemos interpretar estes resultados? Mais uma vez, no contexto clínico, a solução passa pela extrapolação. Conhecemos os nossos doentes, conhecemos os medicamentos, só temos de gerir muito bem a relação entre o benefício e o risco.
Assista às declarações em vídeo:
Veja as fotografias da entrevista:
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