Henry Marsh: “Há uma grande hipocrisia na relação entre o médico e o doente”
Numa conferência promovida pela Academia Cuf, na passada sexta-feira, dia 3 de junho, ao final da tarde, Henry Marsh, que acabou de lançar o livro “Não faças mal”, fez uma reflexão sobre a “hipocrisia da relação entre médicos e doentes e sobre a dificuldade que os médicos sentem em serem honestos. O neurocirurgião britânico assumiu, de forma humilde, perante os seus pares, alguns erros e “faltas de cuidado” que cometeu ao longo da sua carreira e que comprometeram a vida de doentes.
“Dizer as coisas como elas são não é assim tão fácil quando sabemos que isso pode magoar o outro”, afirmou Henry Marsh, justificando a dificuldade que os médicos sentem em dizer a verdade aos doentes, sobretudo, quando a verdade é dolorosa.
Partindo do principio de que a relação médico-doente tem como base a confiança, o doente precisa de acreditar que o médico lhe diz sempre a verdade. O problema, acrescentou o neurocirurgião, atualmente consultor do St. George`s Hospital, em Londres, “é que por vezes, nem o médico sabe qual é a verdade pois é muito difícil oferecer uma garantia relativamente ao sucesso de um tratamento ou de uma intervenção, quando os resultados são incertos”. Nenhum doente reponde da mesma forma a determinado tratamento, nenhum caso cirúrgico tem um desfecho igual a outro, mesmo que o procedimento seja exatamente o mesmo. Ainda assim, “mesmo nos casos que sabemos que são muito complicados, temos de dar ao doente uma esperança porque o doente espera isso de nós”.
Segundo Henry Marsh, existem vários fatores que justificam esta dificuldade que o médico sente em dizer a verdade. “Em primeiro lugar, o médico tem de encorajar o doente, tem de o motivar, dar esperança, mesmo quando a situação é muito grave”. Por outro lado, desde muito cedo nas suas carreiras que “os médicos aprendem a fingir e a mentir” para evitar conversas difíceis. “Mentimos sobre a nossa experiência, sobre o nosso conhecimento, sobre as nossas competências. Aprendemos a enganar-nos a nós próprios para conseguirmos enganar os outros. Acreditamos que somos capazes de coisas quando na realidade não fazemos a menor ideia se, de facto, somos”.
“Mesmo nos casos que sabemos que são muito complicados, temos de dar ao doente uma esperança porque o doente espera isso de nós”
Referindo-se à sua experiência enquanto neurocirurgião, Henry Marsh assumiu que, em busca da glória e da consagração pessoais, aceitou, por muitas vezes, operar casos difíceis para poder aprender e evoluir. Até porque, reconheceu, “haverá sempre doentes sacrificados para que, no futuro, outros doentes possam ter benefício”. Enquanto médico “é válido aceitar que assim seja, mas quando passamos para o lado do doente, ficamos a pensar se seremos o caso sacrificado ou o beneficiado”. Nestas circunstâncias “estamos, mais uma vez, a mentir, quando fazemos o doente acreditar que está em boas mãos e que, no fim, tudo vai correr bem”.
Na verdade, reconheceu, “há uma grande hipocrisia na relação entre o médico e o doente. O médico sabe que está a mentir, e o doente até pode saber que está a ser enganado, mas prefere acreditar na mentira porque não tem alternativa. Porque é essa mentira a sua única fonte de esperança. Porque dos médicos não se espera honestidade”.
A par das questões relacionadas com a necessidade de alimentar a esperança do doente e o ego do médico, “há ainda a ganância e o dinheiro”. E mesmo numa atividade “nobre” como a Medicina, “o poder corrompe”, afirmou.
Anatomia do erro
Quando algo corre mal, “o médico tem de ser honesto consigo”. Tem de compreender o que falhou. “É mais fácil acreditar que foi um azar do que assumir o erro”. No entanto, alertou, “aprendemos mais com os erros do que com os azares”. Assumindo que houve erro ou falta de cuidado, o médico vai procurar corrigir. Mas, se optar por acreditar que foi um azar que não dependeu de si, “então não vai aprender nada”.
Citando René Leriche, com a frase que aparece como epígrafe do livro “Não faças mal”, Henry Marsh afirmou que “cada cirurgião carrega dentro de si um pequeno cemitério, ao qual comparece, de tempos em tempos, para fazer uma oração”. E como cirurgião que é, assume que tem o seu pequeno cemitério.
“Todos erramos, todos somos humanos, mas há vieses cognitivos que favorecem a ocorrência do erro”, isto é, a tendência para pensarmos de certa maneira, pode levar a desvios da lógica e de decisões racionais.
Entre esses vieses cognitivos, Henry Marsh apontou a tomada de decisões e vieses comportamentais, a dificuldade de calcular probabilidades e estimativas, os vieses sociais, os erros de memória, entre outros.
“Todos erramos, todos somos humanos, mas há vieses cognitivos que favorecem a ocorrência do erro”
Sendo a cirurgia uma especialidade que implica a tomada de decisões rápidas, no imediato, o palestrante sugeriu um conjunto de medidas que ajudam a contornar estes vieses cognitivos e a minimizar o risco de erro. Trabalhar em equipa, chamar os colegas à razão quando não estão a ser considerados os devidos cuidados, avaliar de forma mais distanciada as probabilidades de risco, colocar os interesses do doente no topo das prioridades foram algumas das recomendações de Henry Marsh.
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