“Vacina contra HPV reduziu a incidência de lesões pré-malignas do colo do útero na ordem dos 70%”
Para assinalar o 10.º aniversário do lançamento da Gardasil, foram apresentados, no âmbito do EUROGIN 2016, que teve lugar em Salzburgo, no passado mês de junho, os resultados do impacto da vacinação contra o HPV na redução da incidência de lesões pré-malignas do útero.
Por ano, 528.000 mulheres são diagnosticadas com cancro do colo do útero, sendo que, a infeção por HPV está na origem de 99,9% dos casos. O Raio-X assistiu por via de webcast a esta sessão e, com base nos dados revelados, foi conhecer a opinião de Carlos Oliveira sobre a descoberta da vacina que pode prevenir este tipo de cancro. Na mesma altura em que foram anunciadas, pela Direção Geral da Saúde, as alterações ao Plano Nacional de Vacinação para 2017, o ginecologista e oncologista, atual presidente do Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, revelou-se satisfeito pela introdução da Gardasil 9 no PNV e garantiu que dentro de poucos anos “o cancro do colo do útero terá uma incidência residual”.
Carlos Oliveira, presidente do Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro
Raio-X – O que representa esta vacina no contexto médico e no contexto na área da Oncologia?
Carlos Oliveira – Quer a descoberta do HPV, enquanto causador de cancro do colo do útero, quer, posteriormente, a vacina contra este vírus, representam uma das maiores conquistas da Medicina do Século XX e de sempre. Equiparo a descoberta do HPV enquanto causador de vários tipos de cancro, entre os quais 99,9% dos cancros de colo do útero, à descoberta do Raio-X no final do século XIX, ou à descoberta da radioterapia no princípio do século XX. Portanto, é uma descoberta notável.
RX – Além do cancro do colo do útero, a que outros tipos de tumores a infeção por HPV está também associada?
CO – A relação mais forte é, sem dúvida no cancro do colo do útero. Ou seja, a quase totalidade dos casos de cancro do colo do útero estão relacionadas com o HPV, sobretudo com as estirpes 16 e 18. No entanto, este vírus está também associado ao cancro do canal anal, aos tumores da cabeça e pescoço, da vulva e a vagina.
RX – Assinala-se este ano o 10.º aniversário do lançamento da Gardasil, a vacina contra o HPV. Qual o seu impacto na prevenção das lesões pré-malignas associadas ao desenvolvimento de cancro do colo do útero?
CO – A vacina lançada há dez anos, a Gardasil 4, reduziu a incidência de lesões pré-malignas do colo do útero na ordem dos 70%. Entre setembro e outubro será lançada a Gardasil 9 que tem uma cobertura de 90 a 95%. Em Portugal fizemos um estudo que foi um complemento do CLEOPATRA, que tínhamos feito anteriormente e que é o maior estudo português na área do HPV, em que fomos ver qual a potencial cobertura da população portuguesa associada à vacinação com Gardasil 9. Tendo em conta a amostra avaliada nesse estudo, atingimos uma cobertura de proteção de 94%. Em termos epidemiológicos, isto significa que o cancro do colo do útero vai transformar-se, provavelmente, num tumor com uma incidência residual, inferior à do cancro do testículo. Já mesmo hoje em dia há também uma mudança relevante no paradigma do rastreio do cancro do colo do útero. Portanto, a evolução face ao aparecimento da vacina, conjugada com esta preocupação em relação ao rastreio farão deste tipo de tumor uma doença mais rara.
“Quase totalidade dos casos de cancro do colo do útero estão relacionadas com o HPV, sobretudo com as estirpes 16 e 18. No entanto, este vírus está também associado ao cancro do canal anal, aos tumores da cabeça e pescoço, da vulva e a vagina”
“O teste do Papanicolau morreu”
RX – E em que é que consiste este novo paradigma do rastreio?
CO – Há cerca de um ano e meio que não faço Papanicolau. Aliás, costumo dizer às minhas doentes que o papanicolau morreu. A população onde este teste pode ser feito passou a ser muito reduzida porque nas jovens vacinadas que, na altura tinham 18 anos e que agora já têm 28, o rastreio deve ser feito pelo teste do HPV e não pelo Papanicolau. Uma vez que o risco de lesões nas mulheres vacinadas passou para 30%, com a primeira Gardasil, e que o Papanicolau é um teste que dá muitos falsos positivos e negativos (todos nós assistimos a situações de mulheres com um papanicolau normal e com cancro do colo do útero invasivo passados um ou dois anos, assim como vimos muitas mulheres com um papanicolau alterado e sem qualquer lesão pré-maligna), o novo paradigma do rastreio é o teste do HPV, sobretudo nas mulheres com mais de 30-35 anos. O uso do Papanicolau ficará restrito às mulheres entre os 25 e os 30-35 anos, no entanto, nesta faixa da população, muitas mulheres portuguesas já foram vacinadas. O Papanicolau poderá eventualmente ser útil em situações em que o teste do HPV seja positivo e em que haja interesse em complementar os testes. Pessoalmente, nesses casos, prefiro substituir por uma biopsia ou colposcopia com biopsia dirigida que permite um diagnóstico mais definitivo.
RX – Mas havendo essa redução tão significativa da incidência de cancro do colo do útero, no futuro faz sentido que o rastreio se mantenha universal?
CO – O rastreio é necessário, deve continuar a ser universal durante mais 10 ou 15 anos, até haver resultados sobre o impacto da vacinação na curva epidemiológica do cancro do colo do útero. Até aqui só são conhecidos dados da vacinação em relação à incidência de lesões pré-malignas. As primeiras jovens a serem vacinadas terão agora 28 anos e aos 28 anos, o cancro do colo do útero é muito raro. Temos de esperar mais tempo para podermos avaliar o verdadeiro impacto da vacina.
RX – Dentro de quantas gerações é que essa incidência do cancro do colo do útero passará a ser residual?
CO – Eu diria que devemos começar a contar a partir da introdução da vacina Gardasil 9. Penso que dentro de 20 anos, o cancro do colo do útero terá uma incidência residual.
Plano Nacional de Vacinação 2017
RX – O Plano Nacional de Vacinação (PNV) prevê para 2017 a vacinação contra o HPV em meninas mais jovens e prevê também a substituição da Gardasil 4 pela Gardasil 9. Que benefícios adicionais podem advir destas medidas?
CO – Fiquei muito satisfeito como facto de o Ministério introduzir esta vacina no PNV pois tal representa um reconhecimento da sua utilidade e dos benefícios em termos de cobertura da proteção contra as lesões pré-malignas do útero. Durante um ano ou um ano e meio teremos ainda as duas vacinas a serem administradas, mas gradualmente, a Gardasil 4 será substituída pela Gardasil 9. Além disso, quem já foi vacinada com a Gardasil 4 deve ser agora vacinada com a Gardasil 9. O ganho em termos de proteção justifica em pleno este reforço.
Em relação à vacinação de meninas em idades mais precoces, penso que tal se prende com a possibilidade de administrar a vacina contra o HPV em simultâneo com outras que são dadas na mesma altura. A principal justificação será essa. Por outro lado, sabemos que quanto mais jovens forem as raparigas vacinadas, maior será a imunidade.
“A vacina lançada há dez anos, a Gardasil 4, reduziu a incidência de lesões pré-malignas do colo do útero na ordem dos 70%. Entre setembro e outubro será lançada a Gardasil 9 que tem uma cobertura de 90 a 95%”
RX – Mas a vacina está também recomendada para mulheres adultas?
CO – Neste momento não há limite de idade para a vacinação contra o HPV. A diferença é que as mulheres adultas têm menos imunidade do que as adolescentes. Mas qualquer mulher pode fazer a vacina contra o HPV e ficar protegida contra as lesões induzidas por este vírus. Entendo que esse assunto deva ser discutido porque não creio que haja justificação para o Estado se ocupar disso. Do ponto de vista prático, considero que as mulheres devem ser vacinadas até aos 35-40 anos mas, a partir daí, cada caso deve ser avaliado individualmente. Em mulheres mais velhas só se justificará em situações de risco, como a existência de múltiplos parceiros sexuais e uma eventual maior exposição ao vírus.
RX – E os rapazes, devem ou não ser vacinados?
CO – Neste momento, a vacina não está, nem vai ser em breve, comparticipada para os rapazes. Numa perspetiva clínica, há uma justificação para vacinar os rapazes, mas tenho dúvidas em relação ao facto de ter de ser o Estado a assumir essa responsabilidade. Portugal tem um excelente PNV e tem uma das taxas mais elevadas do mundo no que respeita à cobertura da vacinação contra o HPV. Portanto, em Portugal, os rapazes não têm onde se infetar. Mas não há fronteiras na Europa e os rapazes podem ter relações com jovens de outros países onde não há a mesma facilidade de acesso a esta vacina. E não é preciso ir muito longe. Em França, por exemplo, a taxa de cobertura da vacina contra o HPV não chega a 30%. Na Alemanha anda à volta dos 30 a 40%. E os jovens vão cada vez mais por essa Europa fora. Seja para estudar, para passear ou para trabalhar. Mas atribuir ao Estado essa obrigação de proteger os rapazes já me parece questionável, tendo em conta a relação custo-benefício. Penso, no entanto, que devemos explicar aos pais a importância de vacinarem os seus filhos. Eu próprio tenho um neto e na altura certa farei questão de o vacinar.
“O rastreio é necessário, deve continuar a ser universal durante mais 10 ou 15 anos, até haver resultados sobre o impacto da vacinação na curva epidemiológica do cancro do colo do útero”
RX – Na população masculina o HPV surge mais frequentemente associado a que tipo de tumores?
CO – Não com a mesma taxa de relação que existe, nas mulheres, entre o HPV e o cancro do colo do útero, nos homens, este vírus está associado ao cancro do pénis, do canal anal e da cavidade oral. Penso que os homens que mais beneficiariam da vacinação seriam os homossexuais. A minha opinião é que, para já, a vacinação contra o HPV para os rapazes não deve ser incluída no PNV, mas deve ser parcialmente comparticipada, assim como para as mulheres mais velhas que, neste momento, têm de pagar a vacina na totalidade caso queiram proteger-se.