“Neste dia refletimos não só sobre a hemofilia como também sobre outras coagulopatias congénitas”
Hoje, dia 17 de abril, assinala-se o Dia Mundial da Hemofilia, um distúrbio hemorrágico raro, congénito, fatal e incapacitante (se não for devidamente tratado) que se caracteriza por uma alteração genética que provoca a ausência ou a baixa concentração de uma determinada proteína no sangue. Quando ocorre uma lesão nos vasos sanguíneos o corpo humano utiliza-se da coagulação sanguínea para buscar a hemostasia na tentativa de travar a perda sanguínea. Em condições normais, as plaquetas e os fatores de coagulação agem formando um coágulo de fibrina impede o sangramento local, no caso de ser hemofílico/hemofílica, esses fatores de coagulação estão num estado inativo impossibilitando a coagulação. “É uma doença com assimetrias mundiais: o acesso ao diagnóstico e ao tratamento adequado e seguro, em países com poucos recursos económicos, é insuficiente”, afirma Alexandra Santos, Médica Assistente Hospitalar de Imuno-hemoterapia do Hospital de S. José, Centro Hospitalar Lisboa Central.
A alteração genética, que se define por hemofilia, ocorre no cromossoma X, afetando indivíduos do sexo masculino sendo as mulheres portadoras da doença direta ou indiretamente. Algumas podem ter um nível de fator um pouco abaixo do normal, pelo que devem ser sempre rastreadas para aferição do risco hemorrágico. A mulher “tem desafios hemorrágicos fisiológicos regulares desde a adolescência até à menopausa, podendo passar por períodos de risco hemorrágico acrescido, tais como a gravidez e parto”, explana Alexandra Santos. Também as perdas menstruais podem ser importantes e levar a estados de anemia crónica e/ou de grave carência de ferro. “Na maioria dos casos, estas manifestações são desvalorizadas pela própria mulher e pela comunidade médica, não sendo, de um modo geral, diagnosticadas nem tratadas devidamente, podendo inclusive interferir no quotidiano da mulher e na sua qualidade de vida”. As mulheres portadoras de hemofilia têm muitos desafios psicológicos, sociais e culturais pela vida fora. O peso da herança familiar e o conhecimento direto do sofrimento de familiares mais velhos, em épocas passadas em que o tratamento era insuficiente ou inexistente, pode conduzir a estados de ansiedade, medo e sofrimento. “Também o cuidar de um filho com hemofilia se reveste de uma maior complexidade. Para além da aprendizagem do tratamento, que idealmente deve ser feito no domicílio, e do envolvimento da comunidade (escola, por exemplo), é necessário ajudar a crescer um rapaz que poderá ter momentos de revolta, de recusa, de tristeza, para que perceba e aceite com naturalidade a sua doença”.
O diagnóstico da hemofilia é efetuado laboratorialmente com “um estudo da coagulação que inclui doseamento de fatores da coagulação (VIII ou IX). O estudo genético é essencial para conhecimento da mutação envolvida, que pode ser um fator importante no aparecimento de algumas complicações do tratamento”, explica a Médica Assistente Hospitalar de Imuno-hemoterapia do Hospital de S. José. Nos casos esporádicos e mais graves, “o diagnóstico é feito na primeira infância, habitualmente no nascimento ou nos primeiros meses, com a primeira dentição ou quando a criança começa a gatinhar ou andar” por sua vez, nos casos menos graves “pode ser feito na vida adulta, aquando de uma cirurgia, de um tratamento dentário, de um trauma que decorrem com hemorragia superior ao esperado”.
“Existem 3 graus de gravidade da doença: hemofilia grave, quando não existe fator circulante (<1% fator); hemofilia moderada (>1-5% fator) e hemofilia ligeira (5-50%)”
A hemofilia pode ser classificada em dois tipos, consoante o fator de coagulação que está afetado: hemofilia A (défice de fator VIII) e a hemofilia B (défice de fator IX), “ambas têm o mesmo tipo de manifestações hemorrágicas e os mesmos princípios de tratamento”. Consoante a gravidade do défice do fator, existem “3 graus de gravidade da doença: hemofilia grave, quando não existe fator circulante (<1% fator); hemofilia moderada (>1-5% fator) e hemofilia ligeira (5-50%)”. Os doentes com hemofilia grave, que são a maioria, “têm hemorragias espontâneas, frequentemente nas articulações (hemartroses) ou nos músculos (hematomas), e também em órgãos ou sistemas colocando o indivíduo em risco de vida (hemorragia intracraneana, da orofarínge, digestiva, por exemplo)”. “Cerca de um terço dos doentes com hemofilia A grave desenvolvem anticorpos contra o fator que administram regularmente, designados por inibidores. Esta é a principal complicação do tratamento da hemofilia, na atualidade”. Nestes casos o concentrado de fator é ineficaz e o tratamento dos episódios hemorrágicos é “efetuado com agentes coagulantes de bypass, havendo um risco acrescido de desenvolvimento de artropatia e mais dificuldade no controlo das hemorragias”. A prevalência desta doença “é igual em todo o mundo, sendo mais frequente a Hemofilia A, que afeta 1 em cada 5000 homens”.
Tratamento ideal deve ser o profilático
O tratamento da hemofilia é substitutivo, ou seja, “administra-se um concentrado do fator em falta com o objetivo de obter uma hemóstase eficaz. Todos os fatores existentes têm via de administração endovenosa e têm um tempo de ação limitado”. As inovações mais recentes no tratamento da hemofilia correspondem ao “desenvolvimento de concentrados de fatores da coagulação de maior duração de ação, de agentes que promovem a coagulação por outras vias diferentes e de agentes de administração subcutânea. De referir, ainda, a terapia génica cujos ensaios clínicos têm revelado resultados promissores.” A estratégia terapêutica principal na hemofilia grave é o “tratamento profilático personalizado, ou seja, administrações de fator de forma regular e adaptadas à farmacocinética do fator e ao estilo de vida individuais”. O objetivo deste tratamento é “evitar o desenvolvimento da artropatia e permitir uma qualidade e estilo de vida semelhantes aos da restante população”. Há ainda a referir que nos casos de hemofilia A não grave “o tratamento das hemorragias pode ser feito com agentes farmacológicos que aumentam a concentração de fator VIII”. As pessoas com hemofilia grave devem ter a preocupação de cumprir o tratamento e saber adequa-lo em situações extraordinárias. “Devem manter o seguimento regular no seu Centro de Referência ou Centro de Tratamento. Devem, por outro lado, manter um estilo de vida ativo e saudável para que o aparelho músculo-esquelético esteja apto”. A instituição do tratamento profilático e domiciliário permite um estilo de vida normal e evita o aparecimento de complicações articulares. No entanto, as administrações de fator são “por via endovenosa, o que pode ser um problema nas crianças ou quando os acessos venosos são difíceis ou, ainda, pode ser um entrave à adesão ao tratamento em períodos de vida mais conturbados, como por exemplo na adolescência”.
“É a ocasião privilegiada para informar a sociedade em geral sobre estas patologias raras”
Na data em que se assinala o Dia Mundial da Hemofilia, Alexandra Santos refere que “refletimos não só sobre a hemofilia como também sobre outras coagulopatias congénitas que afetam ambos os sexos. É o caso da doença de von Willebrand, que é a coagulopatia mais frequente e que, juntamente com a hemofilia, representam 95% dos casos de coagulopatias congénitas. Com o apoio familiar, da sociedade e do conhecimento médico que, atualmente é muito avançado, estes homens não são “doentes”, mas sim “pessoas com hemofilia”.
A APH e o seu Comité de Mulheres encaram “a valorização e esclarecimento das portadoras de coagulopatias como um objetivo primordial”, afirma Ana Pastor, Coordenadora do Comité das Mulheres da APH. Estas duas entidades estão disponíveis para ajudar jovens e mulheres portadoras do gene da hemofilia ou de outros défices de coagulação, fornecendo o apoio e informações necessários para lidar com o impacto que esta condição pode ter tanto na sua saúde como na qualidade de vida.
“O Dia Mundial da Hemofilia é uma oportunidade de dar visibilidade a esta doença, enquanto distúrbio hemorrágico genético que afeta maioritariamente os homens, mas também ao conjunto das outras coagulopatias congénitas ainda menos divulgadas, e que podem afetar também as mulheres”. A coordenadora do Comité de Mulheres da APH diz que este dia é “ a ocasião privilegiada para informar a sociedade em geral sobre estas patologias raras, quais são os diferentes distúrbios da coagulação e como é viver com eles, desmistificando e alienando estigmas e, ao mesmo tempo, alertar para as preocupações e necessidades específicas associadas ao cuidado e tratamento das pessoas com coagulopatias congénitas”.
“O Dia Mundial da Hemofilia é uma oportunidade de dar visibilidade a esta doença, enquanto distúrbio hemorrágico genético que afeta maioritariamente os homens, mas também ao conjunto das outras coagulopatias congénitas ainda menos divulgadas, e que podem afetar também as mulheres”
Ana Pastor considera que “o diagnóstico precoce de um distúrbio hemorrágico na mulher, seja ele associado ao défice de um dos fatores de coagulação, ao défice do FvW (Doença de von Willebrand), a défices de agregação plaquetária (Trombastenia de Glanzmann) ou outras alterações plaquetárias, é de vital importância, dado que o desconhecimento da condição pode ter repercussões muito graves, não apenas em caso de trauma ou cirurgia, mas ainda em fases específicas da vida da mulher, como sejam, o aparecimento do período menstrual, a gravidez e o parto”. Este diagnóstico é considerado o “ momento decisivo, a partir do qual o indivíduo passa a ser sabedor da sua condição e, desejavelmente, acompanhado em consulta de especialidade (imuno-hemoterapia) num “Centro de Referência para o Tratamento de Coagulopatias Congénitas”. A ida a este centro é crucial, por ser lá que “é definido o tipo de tratamento mais adequado à sua condição (profilaxia ou tratamento on demand), contribuindo para limitar e minimizar os episódios hemorrágicos e garantindo, desta forma a possibilidade da pessoa diagnosticada com um distúrbio hemorrágico viver uma vida plena, ativa e sem incorrer em riscos desnecessários”.
Hemofilia na primeira pessoa
Ana Pastor é portadora do gene da hemofilia e mãe de uma criança hemofílica. Em declarações ao RaioX explicou todo o desafio de ser mãe, com esta condição, desde a descoberta à sua realidade atual.
“O meu primeiro filho é hemofílico, e o seu diagnóstico não foi para mim uma completa surpresa dado que, embora sem antecedentes familiares da doença, já sabia ser portadora do gene da hemofilia. No entanto, não deixou de ser um momento avassalador. Durante o parto foi colhido sangue do cordão umbilical para doseamento do fator, no intuito de garantir o diagnóstico precoce. Os resultados chegaram no seu primeiro dia de vida”, descreve. “O seu filho é hemofílico” foi a frase que deixou Ana Pastor sem saber como lidar com a situação, assoberbada por uma preocupação e responsabilidade enormes, e sem saber o que fazer para o proteger.
“Criei um monstro, fruto do choque e da desinformação que à altura me assolavam, mas que aos poucos fui desconstruindo, porque quis saber mais sobre a patologia, porque encontrei na APH um apoio e fonte de informação preciosos, e porque o meu próprio filho me foi ensinando, através das suas atitudes e reações ao trauma e aos tratamentos, como gerir a sua condição, sem sobressaltos, dentro de um registo de normalidade”.
“Criei um monstro, fruto do choque e da desinformação que à altura me assolavam, mas que aos poucos fui desconstruindo”
Hoje, continuando a combater o “monstro” que criou, e depois de ter tido um segundo filho sem hemofilia, “posso dizer que os meus principais medos e inseguranças relativamente a ambos são iguais: quero conseguir contribuir para que sejam felizes, realizados e se transformem em adultos confiantes e bem-formados”.
“Preocupo-me que ele, por ter apenas 5 anos, não tenha ainda perfeita consciência da sua condição e das suas implicações, mas por outro lado alegra-me esta mesma inconsciência, que lhe dá uma liberdade de viver a vida sem limites, com uma alegria desmesurada; preocupa-me que ele se possa magoar quando joga à bola, mas encanta-me o sorriso contagiante que ele tem nos lábios sempre que o faz; tenho medo que ele sofra cada vez que tem que fazer tratamento, mas este felizmente existe e está disponível, e é isso que lhe permite ter uma vida ativa e, desejavelmente, sem sequelas articulares”, conta Ana Pastor.
Os cuidados que tem relativamente ao seu filho prendem-se, fundamentalmente, com garantir o seu acompanhamento regular na consulta de imuno-hemoterapia e com a necessidade de informar e formar as pessoas que estão com ele na escola (professoras, auxiliares) e nas outras atividades, relativamente à sua condição de hemofílico e a quais os procedimentos a adotar em caso que traumatismo. Paralelamente, “também faço questão que ele faça ginástica e pratique natação, como forma de fortalecimento dos músculos e proteção das articulações. Sempre que planeamos férias ou um passeio longe do centro de tratamento onde ele é seguido, incluímos no planeamento saber qual é o contacto do centro de tratamento mais próximo do local para onde vamos, e claro, viajamos sempre levando connosco gelo instantâneo e o tratamento que ele necessita em caso de traumatismo, assim como as recomendações da médica que o acompanha e que servem de orientação para os colegas em qualquer hospital ou centro de tratamento”
De uma maneira geral, no seu dia-a-dia, não tem condicionantes a uma vivência idêntica aos restantes meninos de 5 anos. “Obviamente, não deve participar em atividades que geram impactos potencialmente causadores de traumatismos, sendo contraindicada, por exemplo, a prática de artes marciais com contato, boxe, equitação, patinagem, skate e futebol, etc”.
Curiosamente, muita coisa mudou na sua vida, “mas para melhor”. O seu nascimento e o facto de ser hemofílico “obrigou-me a tomar consciência da minha própria condição de portadora de défices de coagulação. A perceção de que o bem-estar dos meus filhos depende, nesta fase tão inicial das suas vidas, do meu próprio bem-estar, fez com que começasse a valorizar o facto de ter uma coagulopatia congénita, e desta forma garantir o acompanhamento médico especializado, essencial para uma boa qualidade de vida”.
Paralelamente, esta tomada de consciência, desenvolveu a necessidade de querer saber mais sobre a sua condição, o que fez com que estreitasse os laços com a APH, “onde conheci mais mulheres com este e outros distúrbios hemorrágicos, e que me levou a integrar, como coordenadora, o Comité de Mulheres da APH desde a sua fundação, em 2014”.
Hoje, não ignora, nem menospreza a hemofilia nem a sua condição de portadora, mas também não as sobrevaloriza, “não deixo que dominem a minha vida”. A receita para o conseguir “é simples: Informação e Amor!”
Por Rita Rodrigues