“A taxa mortalidade por insuficiência cardíaca é superior à demonstrada nos cancros mais comuns”
No nosso país existem cerca de “400 mil doentes com insuficiência cardíaca”, garante José Silva Cardoso, cardiologista do Centro Hospitalar de São João. Na Europa estima-se que sejam “15 milhões” e em todo o mundo cerca de “42 milhões de pessoas”. Até 2035 estes números aumentarão em 50%. Para além do elevado número de doentes, espera-se ainda que a mortalidade e as hospitalizações associadas à insuficiência cardíaca aumentem significativamente o impacto económico da mesma. Confira a entrevista feita ao cardiologista do Centro Hospitalar de São João e saiba mais sobre esta patologia.
RAIOX (RX) – O que é a insuficiência cardíaca (IC)?
José Silva Cardoso (JSC) – A IC traduz-se numa situação em que o coração não consegue bombear sangue em quantidade necessária para fazer face às necessidades metabólicas do organismo. Essa situação pode ser causada por muitas doenças cardíacas, sendo as duas causas mais frequentes o enfarte agudo do miocárdio e a hipertensão. A manifestação clínica é feita através de sintomas como a dispneia ou falta de ar, cansaço ou fadiga e edemas ou pés inchados. Estima-se que em Portugal cerca de 400 mil doentes sofrem de IC, na Europa cerca de 15 milhões e no mundo inteiro cerca de 42 milhões. A taxa de mortalidade por IC é superior à demonstrada nos cancros mais comuns – mama, próstata, cólon e leucemia – e é simultaneamente a primeira causa de internamentos em pessoas com mais de 60 anos na Europa, em Portugal e nos Estados Unidos da América.
RX – Existem vários tipos de IC?
JSC – Sim, a IC está dividida em dois tipos:
– Insuficiência cardíaca sistólica (fração de ejeção reduzida): está relacionada com a contração do miocárdio, ou seja, o coração tem menos força contrátil e a principal causa é o enfarte do miocárdio;
– Insuficiência cardíaca diastólica (fração de ejeção preservada): a força de contração está mantida, mas o coração relaxa mal, tem menos elasticidade, está hipertrofiado. Neste caso a causa principal é a hipertensão arterial e não há nenhum fármaco que tenha demonstrado reduzir a mortalidade destes doentes. Os tratamentos existentes apenas reduzem os internamentos.
Tanto no caso da insuficiência cardíaca sistólica como no da insuficiência cardíaca diastólica, o coração não consegue exercer a sua função, ou seja, bombear adequadamente o sangue rico em oxigênio para alimentar os tecidos e órgãos do corpo. São duas formas de IC que se apresentam muito diferentes e, embora os sintomas possam ser exatamente iguais, as causas são obrigatoriamente diferentes, bem como os tratamentos.
RX – A abordagem terapêutica desta doença desenvolve-se em vários patamares, quais são?
JSC – A IC tem muitas causas e o fator determinante no tratamento é a identificação da sua origem, com base na qual será ajustado o tratamento.
Numa primeira abordagem temos o tratamento não-farmacológico, que é extensivo a todos os doentes e consiste na prática de exercício físico moderado e limitado pelos sintomas. Um doente com IC não deve ficar parado. A par disso, a adoção de uma alimentação equilibrada, rica em nutrientes e com particular cuidado com o sal – é fundamental o controlo da ingestão de sal. Também é muito importante o controlo da ingestão do álcool que pode ser um fator de desequilíbrio da IC. Deste tratamento não farmacológico faz ainda parte a profilaxia, nomeadamente com vacinas para, por exemplo a gripe, que é uma das causas de descompensação da IC no Inverno, e também a vacina contra infeções pneumocócicas.
Na Insuficiência cardíaca sistólica é feito o tratamento farmacológico que assenta na combinação de três tipos de fármacos comumente chamados bloqueadores neuro-hormonais – inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA), bloqueadores beta–adrenérgicos (betabloqueadores) e os antagonistas do recetor mineralo-corticoide. No entanto, quando o doente faz esta terapêutica e permanece sintomático as recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia afirmam que deve ser feito substituição dos IECA para a associação sacubitril/valsartan. Desta forma a terapêutica farmacológica padrão da IC, em 2018, é a combinação de sacubitril/valsartan com betabloqueadores e com antagonistas do recetor mineralo-corticoide. Esta combinação terapêutica demonstra um maior impacto sobre a mortalidade e morbilidade. Ainda neste grupo de doentes, pode ser necessário controlar a frequência cardíaca (FC), e quando o doente atinge mais de 60 batimentos por minuto é recomendado o uso de ivabradina. Ainda assim, o doente pode ter muito frequentemente congestão/acumulação de líquidos – pés inchados e edemas – e aí precisará ainda de terapêutica diurética.
Na Insuficiência cardíaca diastólica não há nenhum fármaco que tenha demonstrado reduzir a mortalidade destes doentes, os existentes apenas reduzem os internamentos. A terapêutica neste grupo está relacionada com o controlo da frequência cardíaca, da tensão arterial, da isquemia miocardia (se existir) e da congestão.
Se a causa for uma lesão valvular o doente terá que ser operado ao coração, em vez de fazer a terapêutica farmacológica que até pode mesmo estar contraindicada.
Alguns doentes carecerão, adicionalmente, da implantação de aparelhos especiais para aumentar a sincronia e a força do coração – ressincronizadores – e/ou para tratar arritmias mortais – desfibriladores. As arritmias são uma das principais causas de mortalidade em doentes com IC.
Os doentes mais graves serão alvo de intervenção cirúrgica, sendo as cirurgias mais comuns a das coronária, o transplante cardíaco ou implantação de máquinas de apoio mecânico ao coração (assistência ventricular).
RX – As formas terapêuticas demonstram efeitos colaterais?
JSC – Quando falávamos no tratamento da IC com fração de ejeção reduzida, os inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona (ISRAA) demonstram uma redução da mortalidade e dos internamentos dos doentes. No entanto, conduzem ao aumento do potássio sérico. Sendo a faixa de segurança do potássio sérico muito estreita – entre 4 e 5 mEq – se existirem valores inferiores a 4, o risco de ter uma arritmia grave é alto. Se tiver acima de 5, o risco é também maior. Superiores a 6, tornam-se contraindicados. Desta forma os ISRAA em doentes com IC, com diabetes e com insuficiência renal, desenvolvem frequentemente níveis de potássio acima dos 5. E isto é um problema bastante frequente neste grupo de doentes com IC com fração de ejeção reduzida.
Assim ao queremos proteger os doentes, aumentando a taxa de sobrevivência a médio longo prazo e reduzindo os internamentos, podemos estar a induzir o risco da hipercalemia (níveis anormais de potássio no sangue) e a expor os doentes a um risco imediato de arritmia fatal. De acordo com as recomendações internacionais, o que nós fazemos na prática clínica, por receio das arritmias resultantes da hipercalemia, é uma redução ou até suspensão dos ISRAA. Desta forma protegemos o doente da hipercalemia, mas, por outro lado, aumentamos o risco da mortalidade e dos internamentos. E esta prática associa-se a um pior prognóstico.
RX – Nesse sentido de que forma é que é possível utilizar as doses necessárias dos inibidores de enzima de conversão e dos antagonistas dos recetores imunocorticoides de forma segura?
JSC – Hoje em dia é possível usá-los em segurança com a utilização do Patirómero, um fármaco que consegue inibir a absorção do potássio ao nível do cólon e, quando iniciado em doentes com IC, permite baixar rapidamente os níveis de potássio para valores de segurança. Há um estudo que demonstra que esse efeito protetor se mantém cronicamente, desde que o doente tome o medicamento corretamente. Com este fármaco podemos usar as doses mais altas dos três bloqueadores hormonais sempre em segurança. Trata-se de uma mais-valia no tratamento dos doentes com IC.
Sabia que…
Foi recentemente inaugurada a Nova Fábrica da Om Pharma, no passado dia 19 de junho, cujo objetivo primordial foi a produção de Patirómero para o tratamento dos doentes renais e cardíacos que sofrem de hipercalemia.
O Patirómero, ao regularizar os níveis de potássio, permitirá que os doentes recebam as doses adequadas de terapêutica modificadora do prognóstico da IC e da doença renal crónica. Trata-se de um medicamento inovador, e foi aprovado pela European Medicines Agency (EMA) em 2017.