Projeto HIT-CF visa aumentar o acesso dos doentes com fibrose quística aos novos medicamentos
A fibrose quística (FQ) é uma das doenças genéticas mais comuns, mas a sua incidência é variada. O Raio-X entrevistou Margarida Amaral, professora e membro da equipa que desenvolveu um dos maiores projetos europeus no combate à doença – o HIT-CF. A coordenadora do Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (BioISI), da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, explicou que “o projeto HIT-CF visa aumentar o número de pacientes com acesso aos novos medicamentos”
Raio-X (RX): O que é a fibrose quística (FQ)?
Margarida Amaral (MA): A FQ é a doença hereditária letal mais comum na Europa que tem como origem mutações num único gene (o gene CFTR) que codifica para uma proteína que funciona como canal de iões cloreto. Para a doença se manifestar é preciso herdar um gene mutado do Pai e outro da Mãe (os quais não têm quaisquer sintomas). A doença é caracterizada por uma acumulação de muco extremamente viscoso que bloqueia sobretudo as vias respiratórias e que leva a infeções recorrentes nos pulmões. A FQ ainda não tem cura. Tratando-se duma doença hereditária, os grupos de risco são as famílias em que haja já um ou mais casos de FQ.
RX: Quais os sintomas da fibrose quística?
MA: A FQ pode manifestar-se logo à nascença por uma dificuldade em ganhar peso e estatura, mas os principais sintomas desta doença são a nível respiratório (nomeadamente infeções de repetição), e que podem também aparecer logo nos primeiros meses de vida. Outros sintomas incluem dificuldade em digerir os alimentos ingeridos (daí o impedimento em ganhar peso e estatura), obstruções intestinais, infertilidade masculina, etc.
RX: Como é feito o diagnostico?
MA: Tradicionalmente, o diagnóstico decorre em primeiro lugar pelas manifestações clínicas acima mencionadas, que depois é confirmado pelo chamado ‘teste de suor’, através do qual se mede a concentração de iões cloreto no suor. Quando esta é elevada, confirma-se o diagnóstico de FQ. No entanto, hoje em dia, a FQ faz parte do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP[1]) ou, seja o teste do pezinho que é realizado em todos os bebés à nascença, por isso pode já ser diagnosticada antes do aparecimento dos primeiros sintomas clínicos, o que permite uma intervenção mais atempada em termos do tratamento.
RX: Como é feito o tratamento?
MA: O tratamento consiste sobretudo em debelar os sintomas da doença, nomeadamente: agentes mucolíticos e fisioterapia peitoral (cinesiterapia) diária para libertação do espesso muco das vias respiratórias, antibióticos para combater as infeções, suplementos enzimáticos para a digestão dos alimentos, vitaminas e outros suplementos alimentares para contrariar o baixo peso e estatura, agentes anti-inflamatórios para fazer face a processos inflamatórios crónicos, etc. No entanto, recentemente surgiram para algumas variantes (mutações) da doença as novas terapias que atuam a nível do defeito básico ou seja, os chamados medicamentos moduladores da proteína CFTR.
RX: O que é o projeto europeu no combate à doença – o HIT-CF Europe?
MA: O projeto HIT-CF Europe visa encontrar novas terapias deste último tipo (moduladoras da proteína CFTR) sobretudo para pacientes com mutações menos comuns, ou seja aquelas para as quais não existem ainda medicamentos deste novo tipo. O projeto decorre em 5 anos (estamos a terminar o primeiro) e consiste em várias etapas.
Num primeiro passo isolam-se células-estaminais do intestino dos próprios pacientes, que são cultivadas em laboratório formando “mini-intestinos” (designados por “organoides”) em vários centros da Europa e em Portugal no grupo FunGP do BioISI (Lisboa). Isto requer retirar uma pequena biopsia de alguns milímetros de tecido retal por um procedimento praticamente indolor.
Em segundo lugar, testa-se laboratorialmente a eficácia desses novos potenciais medicamentos nos “mini-intestinos” dos pacientes obtidos no primeiro passo.
Por fim, com base nos efeitos destes medicamentos nos organoides, os pacientes são selecionados e convidados a participar em ensaios clínicos (organizados num dos 43 Centros de ensaios clínicos da rede ECFS – nomeadamente em Lisboa) para avaliar o benefício dos medicamentos nos pacientes a nível clínico. Assim, cada grupo de pacientes participará num ensaio clínico para testar o medicamento candidato que laboratorialmente se tenha mostrado mais promissor nos seus próprios tecidos.
RX: Quais são as principais vantagens desta nova forma de produzir fármacos?
MA: O projeto HIT-CF visa aumentar o número de pacientes com acesso aos novos medicamentos, facilitando o acesso aos medicamentos mais promissores que estão em desenvolvimento. Não será provavelmente ainda para todos, mas já será uma boa aproximação. A principal vantagem é que estas novas terapias (os moduladores da proteína CFTR), ao atuarem a nível do defeito básico, têm de facto o potencial para alterar o curso desta doença, sobretudo com grande impacto a nível da sobrevida dos pacientes.
RX: Qual é o impacto que esta mudança poderá ter nas várias vertentes da vida das pessoas que vivem com FQ e dos seus familiares?
MA: Para os pacientes que vierem a participar nos ensaios clínicos dos novos medicamentos, uma vez demonstrada a sua eficácia a nível da clínica, existe o potencial de continuarem com a medicação a assim verem aumentadas quer a qualidade quer a sua esperança de vida.
Por Rita Rodrigues
Referências:
[1] www.insa.min-saude.pt/category/areas-de-atuacao/genetica-humana/programa-nacional-de-diagnostico-precoce