Especial Eutanásia: Perspetiva de um pneumologista
A Assembleia da República aprovou ontem na generalidade os cinco projetos de lei apresentados para a despenalização da eutanásia. No seguimento do Especial sobre o tema do Raio-X, partilhamos a visão de José Pedro Boléo-Tomé, pneumologista no Hospital Prof. Doutor Fernando da Fonseca.
“Há 18 anos que sou médico. Ao longo dos anos, já diagnostiquei e acompanhei muitos doentes com doenças graves, frequentemente com percursos de sofrimento e de inexorável caminho para a degradação física, a perda de capacidades, a dependência e, em última análise, a morte. Apesar disso, nunca nestes anos um doente me pediu a morte. Já homens e mulheres viram os seus corpos definhar lentamente, sumidos pela doença, primeiro submetidos ao escrutínio radiográfico da técnica médica, examinados e microscopiados, nas suas veias circulando todo o tipo de fármacos, moléculas miraculosas da ciência, numa luta pela cura que nos foge, e depois a trégua e o deslizar para o fim, por vezes lento e dolorosamente violento, outras vezes suave, como um sopro que se apaga. No entanto, nunca um doente me segurou na mão e me olhou nos olhos, dizendo: “dê-me a morte”.
Tive, talvez, sorte. Mas vi o que é morrer sozinho, quando o mais próximo de uma família é a enfermeira que tira 2 minutos entre rondas para segurar a mão deste homem que expira, como que sussurrando “não tenhas medo”. Vi o que é o sofrimento abandonado entre tubos e cateteres, o não poder ter alta e voltar a ver a casa onde fomos felizes porque não há quem cuide, o medo do desconhecido e do que vai acontecer, de não ter tempo de arrumar a vida, dos silêncios consumados dos médicos e das cortinas que se correm, para que não se veja a morte anunciada, o signo do nosso falhanço de curar, o peso para as famílias e a ausência de resposta dos serviços.
Vive-se cada vez mais tempo, mas parece que cada vez morremos pior. Mais sozinhos e velhos, corremos aos hospitais aflitos, atulhados de doentes, de profissionais exaustos e de ausência de respostas quando não se pode curar ou tratar. Os hospitais tornaram-se as casas onde se morre, porque já não o toleramos noutro local.
No momento em que em Portugal se discute novamente a eutanásia, ou seja, o acto de provocar a morte a um doente a seu pedido, continuamos esquecidos da verdadeira e urgente discussão, que é a de que como viver melhor até à morte, até ao momento derradeiro.
É preciso lembrar que eutanásia não é distanásia, ou a procura obstinada do prolongamento da vida, a todo o custo e sem benefício para o doente – além de ilegal e condenável deontologicamente, é eticamente errada. Importa, pois, discutir até que ponto se previne que a Medicina tecnicista e despersonalizada do século XXI deslize para este erro e se esqueça de quando a vida chega ao seu termo. E isso é mais importante do que a eutanásia.
É necessário repetir, se não tivesse já sido repetido tantas vezes, que cuidados paliativos não são infusões de morfina nas últimas 24h de vida, são verdadeiros cuidados centrados no doente e na família, para o aliviar nos seus sintomas, o acompanhar nas suas dúvidas e sobretudo, para não o deixar sozinho. E que muito poucos, demasiado poucos, doentes crónicos ou terminais têm acesso a este cuidado, e isto é mais urgente que a eutanásia.
É necessário afirmar, de novo, que acima dos partidos, das confissões religiosas, das doutrinas, das opiniões mediáticas ou das modas, estão os valores fundamentais que sustentam a nossa sociedade universal, como Homens que não existem sozinhos e auto-suficientes mas para o Outro, para os outros, precisando do outro em todos os momentos e também naquele mais solitário de todos que é a morte. E que demolir o pilar fundamental que é o valor indiscutível e indisponível da vida abre excepções perigosas, feridas profundas, relativizando o que de mais sagrado temos.
É importante não esquecer que, sob a capa da compaixão em querer aliviar o sofrimento, terminando a vida, jazem dúvidas profundas. Tem sido gasta a expressão “morrer com dignidade” e para isso dar a eutanásia, como se a doença ou o sofrimento eliminasse ou desgastasse a dignidade da pessoa. No entanto, a dignidade humana é intrínseca em todas as situações, mesmo nos mais diminuídos, nos mais fragilizados e nos moribundos desfigurados. Estaremos antes a ter compaixão por nós próprios ou, enquanto Sociedade, a cuidar efectivamente dos mais frágeis de nós, os que mais merecem que o Estado os apoie?
É crucial entender que cada vez mais temos de formar verdadeiros profissionais capazes de cuidar, que este acto cuidador tem de envolver toda a Sociedade, para lá dos médicos, enfermeiros e técnicos, e que isso só acontecerá com um investimento sério e centrado nos doentes e nas suas famílias, em todas as etapas e também na derradeira.
Finalmente, ao permitir a eutanásia, este Estado está a pedir aos médicos, que, em última análise, são quem decidirá se o pedido do doente que quer morrer é ou não válido e administrarão a morte, que violem aquilo que juraram, que se esqueçam de cuidar e sejam assim cúmplices da Sociedade asséptica em que nos estamos a tornar, incapaz de tolerar o sofrimento.”
Artigo publicado originalmente na revista Acção Médica da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.