Doença venosa crónica: “Talvez mais surpreendente seja o facto de uma parte apreciável dos doentes que já sabe ter este problema nunca ter procurado tratamento”
A doença venosa crónica (DVC) é um problema muito comum, que afeta principalmente as mulheres, capaz de reduzir a qualidade de vida e com repercussões a nível socioeconómico, pois as suas complicações podem ser responsáveis por dor crónica e incapacitante. Em entrevista, Joana de Carvalho, especialista em Angiologia e Cirurgia Vascular, aborda esta patologia, inclusivamente os tratamentos disponíveis e a importância de um diagnóstico precoce.
O que é afinal a doença venosa crónica?
A DVC é uma doença das veias dos membros inferiores. Pode definir-se como a presença de qualquer anomalia morfológica ou funcional do sistema venoso, de longa duração, provocando sintomas ou sinais que tornam necessárias a investigação e terapêutica.
Sem pretender entrar em detalhes demasiado técnicos, o que se passa na maior parte das vezes é o refluxo de sangue ao longo das veias superficiais que foram afetadas pela doença (cuja parede foi danificada, levando à sua dilatação – são agora veias incompetentes ou insuficientes). Este refluxo (retorno de sangue em sentido contrário ao normal / fisiológico) provoca um aumento de pressão no território venoso atingido. É esta hipertensão venosa a responsável pelos sinais, sintomas e progressão da doença (inexorável se algo não for feito).
Em alguns casos (muito menos frequentemente) as veias profundas podem estar implicadas. São situações em para além do refluxo pode ocorrer obstrução venosa, dificultando a normal drenagem venosa.
Qual a prevalência em Portugal e quais as pessoas mais afetadas?
A maioria das estimativas aponta para que até 60% da população sofra de alguma forma de doença venosa crónica, sobretudo as mulheres (este dado é de resto constante no que costumamos designar como sociedades ocidentais).
Qualquer pessoa pode ser afetada, mas alguns grupos apresentam risco mais elevado. Assim:
- mulheres – sobretudo tendo passado por gravidez(es),
- pessoas com excesso de peso (este factor é hoje robustamente suportado por vários estudos)
- doentes com familiares directos com DVC – embora nenhuma “alteração genética” específica tenha até hoje sido associada inequivocamente a esta condição
- idade – quanto mais esta avança mais provável se torna o aparecimento e o agravamento da doença
- etnicidade – sabemos hoje que determinadas formas são menos prevalentes em determinados grupos (as varizes, por exemplo, ocorrem menos em asiáticos)
Quais as principais causas?
Embora as verdadeiras causas de DVC permaneçam por estabelecer de modo perentório (preferimos por isso falar em fatores de risco), a hipertensão venosa é hoje aceite como o mecanismo por trás do aparecimento e agravamento da doença.
Quais os sinais e sintomas de alerta?
Esta doença tem um espetro amplo de sinais e sintomas, nomeadamente: presença de varizes (veias dilatadas e tortuosas) ou de “derrames” inestéticos, edema (inchaço das pernas, sobretudo ao fim do dia e durante os períodos mais quentes do ano) e em casos mais graves alterações das características da pele – hiperpigmentação, lipodermatosclerose (atrofia progressiva dos tecidos subjacentes à epiderme, resultando numa área de pele fina, inflexível, sensível e muito frágil). Em alguns casos, a doença pode provocar o aparecimento de úlceras que cicatrizam com dificuldade e reaparecem amiúde, infelizmente sob formas cada vez mais graves. Os pacientes costumam queixar-se de dor e sensação de peso, calor ou cansaço, tipicamente após longos períodos em pé. Cãibras (quase sempre nos gémeos) e sensação de pernas inquietas são sintomas também frequentes durante a noite.
O que é possível fazer em termos de prevenção?
Quanto à prevenção, talvez devamos distinguir 2 níveis:
- Prevenção primária (visa evitar o aparecimento da doença) – evicção de um estilo de vida sedentário (o exercício físico envolvendo os músculos das pernas estimula fortemente a drenagem venosa); combate à obesidade; uso de meias de compressão elástica (há-as de vários tipos e classes – embora sem prova científica robusta na prevenção primária, o seu uso selectivo, por determinadas pessoas em certos contextos, poderá fazer sentido).
- Prevenção secundária (visa evitar ou atrasar o agravamento da doença já existente) – dependendo do ponto em que a DVC já se encontra, poderá fazer sentido considerar a adopção de algumas medidas para além das mencionadas no ponto anterior: compressão pneumática intermitente, massagem e elevação das pernas, uso de medicamentos venoativos (naturais ou sintéticos, a selecionar mediante a situação clínica)
O diagnóstico precoce é fundamental?
O diagnóstico precoce é um dos pilares fundamentais para um bom resultado do tratamento. Quanto mais cedo este for efetuado, mais provável é que se consigam resultados esteticamente mais agradáveis, mais duradouros e à conta de períodos de recuperação curtos e confortáveis. Não devemos deixar de ter bem presente que algumas das alterações cutâneas que vão ocorrendo à medida que a doença progride podem não ser reversíveis. Se pretendemos evitar que a pele fique atrófica e / ou pigmentada, só há uma decisão: efetuar o tratamento antes que tal aconteça.
A DVC é uma doença sazonal, apenas do verão, onde parece que há mais queixas? Ou é uma doença que existe o ano todo? Que cuidados ter durante o outono e inverno?
A doença está presente todo o ano. O que se verifica é que as queixas agravam com o o tempo quente devido à exposição a temperaturas mais altas, que contribuem para a vasodilatação (que por sua vez leva a uma hipertensão venosa e a uma permeabilidade da parede dos vasos maiores, intensificando as queixas). Não devemos também menosprezar um aspecto curioso: as manifestações cosméticas da doença estão mais expostas durante os meses quentes, em função do vestuário usado, mormente no sexo feminino – um problema mais visível é um problema mais presente; nada mais natural assim que tudo o que gravita em torno da Doença Venosa (queixas, sua valoração, preocupações, procura de soluções…) ganhe maior relevância durante os meses quentes.
Quais os tratamentos disponíveis? Tratamentos farmacológicos, cirúrgicos?
Comecemos pelo tratamento farmacológico. A maioria dos medicamentos que se podem usar nesta doença são venoactivos (actuam na parede da veia, diminuindo a permeabilidade capilar e a inflamação, aumentando o tónus venoso). A lista (incompleta) é extensa: Fracção Flavonóide Micronizada Purificada, Dobesilato de Cálcio, Rutosídeo, Extracto de Castanha da Índia, Extracto de Folha de Videira Vermelha. Todos demonstraram algum efeito no controlo de sinais e sintomas, embora com graus de robustez científica muito diferentes. A pentoxifilina, o ácido acetilsalicílico e a sulodexida, com mecanismos de acção muito diferentes, podem ser úteis na cicatrização das úlceras venosas. Dependendo do efeito que se pretende maximizar e da situação clínica com que estamos a lidar (controlo sintomático, diminuição do edema, úlcera activa, contexto peri-operatório) a escolha pode ser muito diversa.
Algumas palavras sobre um tratamento importantíssimo, que não podemos considerar nem puramente farmacológico nem cirúrgico: a escleroterapia. Esta técnica envolve a injecção estratégica de agentes químicos (sob a forma de líquido ou espuma) nas veias atingidas, que assim acabam por ser eliminadas. Este método começou por ser utilizado com objectivos estéticos mas tem hoje indicações bem mais vastas. O agente terapêutico mais comum é o polidocanol, em concentrações variadas. Existem ainda assim outras bastante menos utilizadas e com características próprias: tetradecil sulfato de sódio, morruato de sódio, glicerina e solução hipertónica de glicose são alguns exemplos.
Os tratamentos cirúrgicos são hoje em dia de uma variedade assinalável. Mesmo sem entrarmos nas tais situações menos frequentes em que o sistema venoso profundo está envolvido (não operáveis há alguns anos e hoje muitas vezes intervencionadas com sucesso assinalável), as soluções técnicas são múltiplas. Cirurgia “clássica” de exérese física, ablação térmica endoluminal (por LASER, radiofrequência ou vapor), ablação adesiva com cola, são métodos pelos quais podemos eliminar as fontes de refluxo e hipertensão venosa – parando (de uma forma que desejamos definitiva) o processo de auto-agravamento da Doença Venosa. A maioria destes procedimentos pode ser efectuada em ambulatório, muitas vezes sem recurso ao bisturi, com resultados estéticos excelentes e tempos de recuperação muito breves, sem limitação relevante.
Qual o papel do médico de família no acompanhamento destes doentes?
Como em quase todas as doenças muito prevalentes, diria que o médico de família é de uma importância incontornável. Para imensos doentes, o primeiro passo no sentido do esclarecimento ou na procura de uma solução é dado com este profissional. É assim primordial que os especialistas em Medicina Geral e Familiar estejam muito cientes de alguns aspetos: dos principais sinais e sintomas, do quão estes são frequentemente subvalorizados, da história natural da doença e de até onde esta pode progredir, da relevante vantagem de um diagnóstico e tratamento precoces, da segurança com que podemos hoje em dia rebater alguns dos teimosos mitos relativos a este tema.
A população em geral está sensibilizada para esta patologia?
É pelo menos possível afirmar (há dados portugueses bastante recentes) que uma parte relevante das pessoas atingidas por esta doença o desconhece. Os sintomas mais precoces, que muitas vezes precedem as alterações visualizáveis na pele, tendem a ser desvalorizados. Talvez mais surpreendente seja o facto de uma parte apreciável dos doentes que já sabe ter este problema nunca ter procurado tratamento.
Por Marisa Teixeira