Sara Silva Pereira: a investigadora portuguesa que desvendou novos segredos da doença do sono
Sara Silva Pereira, investigadora do Católica Biomedical Research Centre e docente da Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa, acaba de ser distinguida com a BSP President’s Medal — o mais alto prémio científico para jovens parasitologistas no Reino Unido, atribuído apenas pela segunda vez a um investigador fora do país. Desde 2023, lidera o Laboratório de Interações Parasita–Vasculatura, onde estuda como os tripanossomas africanos, causadores da doença do sono, interagem com os vasos sanguíneos dos seus hospedeiros. A sua investigação inovadora promete abrir novas fronteiras no combate a esta doença fatal.
Nesta entrevista ao Raio-X, Sara Silva Pereira partilha o percurso que a levou a dedicar-se a este tema, revela os desafios e descobertas do seu trabalho e explica o impacto do reconhecimento internacional que acaba de receber. Além disso, fala sobre os próximos passos do laboratório e como as suas pesquisas podem vir a transformar a saúde pública e a economia em África.
RAIO-X (RX): Como descreve o percurso que a levou a liderar, desde 2023, o Laboratório de Interações Parasita-Vasculatura?
Sara Silva Pereira (SSP): O meu percurso começou devido ao interesse em Infeciologia e Medicina Tropical durante a minha licenciatura. Acabei por estagiar num laboratório especializado no desenvolvimento de métodos de diagnóstico para leishmaniose e doença de Chagas, o que me abriu portas para o mundo dos tripanossomatídeos, onde se encontram também os tripanossomas africanos. A partir daí, procurei as perguntas certas, sempre com o objetivo de perceber como é que organismos unicelulares, aparentemente tão simples, conseguem manipular um organismo tão complexo como um mamífero. Durante o meu doutoramento, estudei mecanismos de diversidade antigénica em tripanossomas e depois percebi que poderia aplicar o meu conhecimento para estudar uma componente fundamental da infeção muito pouco explorada: a forma como estes parasitas interagem fisicamente com os seus hospedeiros mamíferos e, em particular, com os vasos sanguíneos. Tive a oportunidade de explorar estas interações com novas tecnologias durante o meu pós-doutoramento tanto no Instituto de Medicina Molecular como na EMBL Barcelona. Depois disso, a direção do Centro de Investigação Biomédica da Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa decidiu apostar em mim e na minha linha de investigação, permitindo-me criar o meu laboratório dedicado ao estudo destes mecanismos.
RX: O que significa para si receber a BSP President´s Medal e que reconhecimento traz ao seu trabalho?
SSP: É uma distinção muito especial, sobretudo por vir da Sociedade Britânica de Parasitologia. Para além de ser uma das instituições mais prestigiadas de parasitologia a nível mundial, foi a organizadora do primeiro congresso em que apresentei. Para mim, o prémio representa o reconhecimento de que vale a pena arriscar em temas difíceis e menos convencionais e que esta linha de investigação abre novas perspetivas para a parasitologia.
RX: Para quem não conhece, o que são os tripanossomas africanos e como causam a doença do sono?
SSP: Os tripanossomas africanos são parasitas eucariotas transmitidos pela saliva da mosca tse-tse quando se alimenta do sangue do mamífero. Dentro do hospedeiro, alguns tripanossomas vivem exclusivamente na corrente sanguínea, enquanto outros atravessam os vasos para se estabelecerem nos espaços extracelulares que compõem os vários tecidos e órgãos. Em humanos, causam a doença do sono, nos animais, causam várias doenças como a surra a ou nagana, coletivamente chamadas de tripanossomíase animal. Também causam a sífilis equina, mas esta é uma variante sexualmente transmitida e que não depende da mosca tse-tse.
A doença surge porque os parasitas invadem a corrente sanguínea, multiplicam-se rapidamente e evadem o sistema imunitário maioritariamente por variação antigénica. Em alguns casos, infiltram-se no tecido adiposo, causando perda de peso acentuada, ou no cérebro, levando a alterações neurológicas graves e distúrbios no sono.
RX: Por que razão esta doença continua a ter impacto tão significativo na saúde pública e na economia africana?
SSP: Porque afeta tanto pessoas como animais. Nos humanos, é uma doença debilitante e fatal, mas temos tido avanços consideráveis ao nível da terapêutica e da redução da transmissão. No entanto, isso não se aplica aos animais. A tripanossomíase reduz a produtividade pecuária, diminui a produção de leite e carne, limita a tração animal e prejudica a agricultura. É uma doença que perpetua ciclos de pobreza e fragilidade económica em várias regiões de África.
RX: O seu laboratório estuda o “diálogo” entre os parasitas e os vasos sanguíneos. O que já descobriram sobre estas interações?
SSP: Certos tripanossomas não circulam livremente no sangue, aderem aos vasos sanguíneos num processo a que chamamos sequestração ou citoadesão. Este comportamento já é conhecido desde os anos 70, mas nós descobrimos que os padrões de sequestração são fatores de virulência e afetam diretamente o resultado clínico da doença. Também descobrimos que os parasitas sequestrados se multiplicam mais rapidamente, descrevemos os danos vasculares que causam, e caracterizámos os parâmetros biomecânicos que permitem a sequestração. Agora estamos a identificar moléculas-chave tanto no parasita como no vaso sanguíneo que regulam este mecanismo, abrindo a porta ao desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas.
RX: Que benefícios traz a combinação de computação, biologia da infeção e bioengenharia de tecidos na investigação que desenvolvem?
SSP: Esta combinação permite-nos recriar, de forma controlada, partes da infeção que são impossíveis de observar diretamente nos animais ou nos humanos com a resolução adequada. Os microvasos em chip, aliados a modelos computacionais e de microscopia, permitem-nos ver em detalhe como o parasita interage com tecidos vivos e testar intervenções com maior precisão e rapidez.
RX: Que desafios técnicos enfrentam ao tentar recriar ambientes de doença mais próximos da realidade?
SSP: Os maiores desafios são reproduzir a complexidade do ambiente vascular — fluxo sanguíneo, forças mecânicas, tipos celulares — sem comprometer a viabilidade e características das células que os compõem e dos parasitas. Muitas vezes o segredo é encontrar o melhor sistema para a pergunta que queremos responder. Em algumas situações, faz sentido investir em sistemas complexos, enquanto noutras um sistema mais simples é suficiente.
RX: De que forma estes estudos podem contribuir para o desenvolvimento de novas terapias?
SSP: Ao percebermos exatamente como o parasita se liga aos vasos, podemos desenvolver moléculas que bloqueiam essa adesão. Em vez de matar o parasita diretamente — o que favorece resistência — podemos impedir que ele cause doença. É uma estratégia inovadora e potencialmente mais durável.
RX: Que próximos passos tem previstos para o laboratório e para esta linha de investigação?
SSP: Queremos identificar, de forma sistemática, todos os mediadores de adesão nos parasitas e no hospedeiro e desenvolver protótipos terapêuticos que bloqueiem estas interações. Depois, avançaremos para ensaios pré-clínicos em modelos animais.
RX: O que mais a motiva neste trabalho e que conselho deixaria a jovens investigadores?
SSP: Motiva-me a sensação de que estamos a abrir portas num campo onde ainda há mais perguntas do que respostas. Para jovens investigadores, o meu conselho é: escolham uma pergunta que vos apaixone, procurem mentores rigorosos, mas generosos e não tenham medo de seguir caminhos menos óbvios.
Gostaria de destacar a importância de um bom sistema de apoio. O meu trabalho só é possível porque tenho mentores que me apoiam, colaboradores de excelência em três continentes e uma equipa curiosa e motivada.

Créditos fotográficos: Gonçalo Villaverde