Crónica NeuroSer: Alterações cognitivas após um AVC
O Acidente Vascular Cerebral (AVC) é uma condição neurológica súbita que afeta uma área particular do cérebro, levando à perda de função dependente dessa mesma área. É um dos problemas neurológicos agudos mais comuns e uma das causas mais frequentes de internamentos hospitalares.
Quais as alterações cognitivas que podem surgir após um AVC?
A maioria dos AVCs resultam em algum tipo de alteração a nível cognitivo. O padrão de alterações cognitivas depende essencialmente da área lesada. Como sabemos, o nosso cérebro recruta áreas difusas e coordena-as de forma integrada para realizar uma tarefa. No entanto, existe alguma especialização funcional no cérebro. Quer isto dizer que algumas áreas têm um papel mais importante na integridade de determinadas funções cognitivas. Por exemplo, a maior parte das pessoas têm as funções linguísticas lateralizadas à esquerda no cérebro. Mais especificamente, o lobo temporal esquerdo tem um papel muito importante na linguagem.
De forma geral, após um AVC podemos observar alterações em vários domínios cognitivos e que se podem associar a uma diminuição da funcionalidade dos doentes.
Capacidade atencional
O nosso cérebro recebe uma quantidade enorme de informação a cada segundo. Para nos concentrarmos numa determinada tarefa, o cérebro tem que diferenciar a informação mais relevante da menos relevante, tendo em conta o nosso objetivo final.
A grande maioria das pessoas que sofrem um AVC experienciam dificuldades de concentração, especialmente na fase aguda. A concentração é uma capacidade essencial pois dela dependem uma série de outras funções nervosas mais “sofisticadas”. Se não conseguirmos focar a atenção na informação relevante, não iremos conseguir processá-la, codificá-la nem consolidá-la de maneira a utilizá-la no futuro.
A nível funcional, a pessoa pode não ser capaz de filtrar a informação que a rodeia, dificultando a comunicação interpessoal num ambiente mais ruidoso. Pode também ser difícil manter-se focado numa única tarefa (ex: ler um livro ou ver televisão). Por outro lado, também pode ser um desafio transferir a atenção de uma tarefa para a outra, pelo que, se for interrompida, a pessoa pode não conseguir retomar a tarefa que estava a executar. Mais ainda, a pessoa pode não conseguir dividir facilmente a atenção entre duas ou mais tarefas (ex: não conseguir tirar um café com sucesso enquanto fala com alguém). Finalmente, a pessoa que sofre um AVC pode passar a processar a informação mais lentamente, levando, por exemplo, a que não consiga acompanhar um discurso muito rápido.
Após um AVC no lado direito do cérebro, também é possível que a pessoa não repare em objetos que estão do seu lado esquerdo ou que não preste atenção a metade do seu corpo (ex: não fazer a barba ou não se maquilhar do lado esquerdo da cara) e que apenas coma alimentos apresentados do lado direito do prato. Estes sintomas podem ser muito óbvios para outros mas a própria pessoa não se vai aperceber até alguém chamar a atenção para a sua dificuldade.
Memória
É muito comum surgirem problemas de memória após um AVC, particularmente nas primeiras semanas/meses. Não obstante, alguns destes problemas podem ser explicados pela dificuldade de concentração já referida.
A pessoa pode ter dificuldade em lembrar-se de informação que acabou de lhe ser comunicada ou daquilo que ia fazer. Pode também esquecer-se de datas importantes (ex: consultas médicas), do sítio onde colocou um determinado objeto, do nome de uma pessoa ou daquilo que esta lhe disse da última vez que a viu.
Funções executivas
As alterações do funcionamento executivo também são comuns após um AVC. As funções executivas permitem-nos planear, monitorizar e executar tarefas, resolver problemas e tomar decisões. Também nos permitem adaptar a nossa resposta em função das contingências do meio.
A nível funcional, a pessoa que sofre um AVC pode não ser capaz de planear e executar com sucesso a confecção de uma refeição ou simplesmente não conseguir mudar o canal da televisão. Pode também ter uma diminuição da iniciativa para fazer determinadas tarefas (ex: só tomar banho quando alguém lhe diz para o fazer) ou precisar de pistas de ajuda ao longo da tarefa. Pode ser mais difícil interpretar expressões faciais ou a linguagem corporal ou colocar-se na perspetiva do outro, limitando assim o funcionamento social.
Capacidade práxica
Cada vez que nos movimentamos, o nosso cérebro tem que planear os movimentos a executar e garantir uma sequenciação correta dos mesmos para alcançarmos o nosso objetivo. Um AVC pode comprometer a capacidade para executar movimentos sobreaprendidos (ex: vestir, fazer chá, preparar uma refeição), mesmo na ausência de défices motores – apraxia.
Em termos funcionais a pessoa pode não conseguir realizar uma tarefa por comando verbal (não justificado por alterações motoras), apesar de compreender perfeitamente o que lhe está a ser solicitado. Aqui a dificuldade está no planeamento do movimento, pelo que a pessoa pode não ser capaz de fazer o gesto de “dizer adeus” por comando verbal mas ser capaz de o fazer espontaneamente quando alguém se vai embora. Neste último caso, trata-se de um comportamento que pode ser considerado mais automático e que não implica um nível de pensamento tão sofisticado. Estas dificuldades podem ser facilmente confundíveis com defeitos puramente motores (ex: por diminuição de força) mas os clínicos dispõem de instrumentos que lhes permitem distinguir as duas condições.
Capacidade visuo-percetiva
Após um AVC, a pessoa pode não conseguir avaliar certas características dos objetos (ex: profundidade, tamanho, volume, orientação). Pode também não conseguir avaliar a distância a que se encontra de um obstáculo ou a altura de um degrau.
Pode também ser difícil identificar um prato branco sobre uma toalha branca ou interagir com os objetos com sucesso (ex: tapar um recipiente).
Gnosia (reconhecimento)
Depois de um AVC, a pessoa pode não conseguir reconhecer um objecto visualmente, pelo toque ou pelo som. Este fenómeno recebe o nome de agnosia. A agnosia geralmente é especifica para uma modalidade sensorial, ou seja, a pessoa pode não conseguir reconhecer o objecto visualmente mas não ter essa dificuldade quando toca nele.
Podem ainda surgir alterações noutros domínios cognitivos e também não podemos esquecer as alterações da comunicação que são tão frequentes nesta doença neurológica e tão incapacitantes para os doentes e familiares.
Para além disso, as alterações motoras também são muito comuns nos AVCs e contribuem para aumentar a dependência de terceiros. Por isso, o trabalho multidisciplinar é essencial para prestar os melhores cuidados de saúde possíveis a pessoas com AVC.
Revisão Clínica: Margarida Rebolo
Crónica quinzenal da autoria NeuroSer.