“Um em cada cinco portugueses adultos em Portugal continental tem alguma forma de anemia”
Perante todos os sinais, sintomas e manifestações que a anemia e a ferropénia podem assumir, acaba por ser fácil dispersar na multiplicidade de potenciais diagnósticos. O cansaço, a fadiga, a palidez, as dores musculares nem sempre estão associados ao stresse, à correria do dia-a-dia ou ao desgaste da rotina. E se for anemia? Na semana em que se assinala o Dia da Anemia, António Robalo Nunes, presidente do Anemia Working Group Portugal, alerta os profissionais de saúde para que a anemia faça parte das suspeitas na hora de fazer o diagnóstico. Leia aqui a entrevista do presidente e fique a conhecer mais sobre a doença que afeta 20% dos portugueses.
RAIO-X (RX) – Em que contexto surge o Dia da Anemia?
António Robalo Nunes (ARN) – O Dia da Anemia em Portugal surge por iniciativa do Anemia Working Group e está alocado no dia 26 de novembro de uma forma simbólica pelo facto de 26 ser o número atómico do ferro. Assinala-se em novembro porque é o mês em que, normalmente, desenvolvemos um maior conjunto de atividades.
Temos em curso, em fase já muito adiantada do ponto de vista processual, uma tentativa, a nível legislativo, de consagrar o Dia Nacional da Anemia, o que implica aprovação ao nível do parlamento. Já foi feito todo o percurso até aí, a petição já foi entregue ao Presidente, já foi discutida em plenário – tendo recolhido pareceres favoráveis de todos os grupos parlamentares – e, agora, estamos à espera, com grande esperança, que rapidamente seja feita uma iniciativa legislativa de um dos grupos parlamentares, que seja votada e que possamos, de forma legitima, chamar dia nacional – o que não impede que haja o dia da anemia, como o temos evocado já nos últimos anos.
RX – O que é a anemia?
ARN – A anemia é uma epidemia oculta a nível planetário. É uma condição médica que se traduz, independentemente da sua causa, pela redução de glóbulos vermelhos e da hemoglobina em circulação e, por essa razão, fica comprometida uma das funções mais nobres do organismo sem a qual não é possível haver vida que é o transporte de oxigénio a todos os órgãos e a todos os tecidos.
Esta condição afeta, a nível global, segundo os dados da OMS, cerca de 25% da população. Ou seja, 25% da população a nível global tem alguma forma de anemia, sendo assim, uma situação de grande importância epidemiológica.
RX – Em Portugal, quantas pessoas têm anemia?
ARN – A OMS atribui a Portugal, de uma forma indireta, através de indicadores demográficos, geográficos e económicos, entre outros, cerca de 15% da população adulta. O Anemia Working Group realizou o único estudo epidemiológico nacional dirigido à população adulta – e, portanto, é só aqui que nós temos legitimidade para afirmar a dimensão do problema. Fomos para o terreno, fizemos um estudo muito robusto a nível nacional em função dos censos de 2011 e verificámos que não era assim – o problema era mais grave do que o que a OMS tinha nos atribuiu. Descobrimos que a anemia afeta cerca de 20% da população adulta em Portugal, com assimetrias regionais e com uma carga preferencial do sexo feminino. Na prática, um em cada cinco portugueses adultos em Portugal continental tem alguma forma de anemia. E, destas, mais de 50% são de natureza ferropénica, ou seja, por deficiência de ferro. Portanto, isto ao nível da própria OMS configura um problema de saúde pública assumido e é com este problema que nós constituímos o nosso ponto de partida para as atividades posteriores do grupo.
RX – Quais são as zonas do país mais afetadas e quais poderão ser as potenciais causas dessas assimetrias?
ARN – Curiosamente descobrimos que, face à média nacional, há menos anemia no norte e centro do país e há mais anemia na grande região de Lisboa e Vale do Tejo e no sul do país.
Isto, cruzado com outros estudos de natureza nutricional que entretanto foram realizados, permite-nos especular que, se sabemos que a principal causa é a deficiência de ferro, o perfil alimentar nas regiões norte e centro, por força de hábitos que têm a ver com a conciliação de carne com vegetais (que sabemos hoje que é o melhor cenário da absorção desse ferro), provavelmente poderá ser a razão que explica esta proteção relativa que mesmo assim tem números importantes – estamos a falar de 15 a 20% no norte e aqui em baixo acima dos 20, 23, 25% – foi o que descobrimos no estudo EMPIRE.
Há, de facto, zonas do país onde existe mais anemia e zonas onde existe menos. Não sabemos nada, embora tenhamos muito essa curiosidade, sobre outras faixas etárias, por exemplo nos jovens em idade de crescimento/na adolescência, onde sabemos que o problema também terá provavelmente uma dimensão importante. Também não sabemos nada do que se passa nas nossas ilhas porque ainda não tivemos oportunidade de fazer esse estudo.
RX – Quais os sintomas que devem despertar a preocupação, não só dos doentes mas, sobretudo, dos profissionais de saúde, nomeadamente os especialistas em Medicina Geral e Familiar?
ARN – A anemia compromete sempre o transporte de oxigénio aos tecidos e, portanto, o conjunto de sintomas pelos quais se pode manifestar é muito alargado – eu diria até que pode afetar todos os aparelhos e sistemas. É, digamos, uma condição muito dissimulada, é preciso suspeitar clinicamente. E, se tivermos de eleger um sintoma que habitualmente está sempre presente eu diria que é o cansaço invulgar para as atividades. O grande problema é que nós tendemos a desvalorizar o cansaço ou então temos sempre umas explicações muito criativas para o nosso próprio cansaço – todos nós já tivemos períodos em que tivemos mais ou menos cansados e temos sempre uma explicação. Há que valorizar esse cansaço e há que, sobretudo, partir da suspeita clínica. Além do cansaço, a palidez, as alterações do sono, alterações das unhas, da pele e dificuldade em respirar são também alguns sintomas que nos devem levar a questionar: será anemia?
O médico de família é o nosso grande parceiro e deve, perante este tipo de queixas, sinais e sintomas, ponderar se existe anemia e ter uma atitude proativa confirmando a existência, ou não, dessa mesma anemia.
RX – Esses sintomas estão já presentes na deficiência de ferro mesmo quando ainda não há uma anemia explícita? Quais é que são as diferenças entre a deficiência de ferro e a anemia?
ARN – As anemias por deficiência de ferro são as mais frequentes. O que aprendemos nos últimos anos é que, com elevado grau de legitimidade, a deficiência de ferro, ainda sem anemia, deve constituir uma entidade a ser abordada objetivamente antes que a anemia chegue. Porque a ferropénia (deficiência de ferro) deixada “em roda livre”, não abordada no plano causal e depois no plano terapêutico, quase invariavelmente vai abrir um estádio mais grave de deficiência de ferro que é a anemia.
Provavelmente, se deixarmos chegar a este ponto perdemos a oportunidade de termos feito, em tempo útil, a abordagem quer diagnóstica, quer causal. Os sintomas da anemia e da ferropénia são praticamente os mesmos, aprendemos isso sobretudo em estudos feitos na mulher jovem em idade fértil – não anémicas mas ferropénicas – que foram tratadas e que aqueles que eram os seus indicadores de qualidade de vida o seu portefólio de sinais e sintomas desapareceram.
Portanto, há aqui um novo paradigma, uma nova leitura que fazemos deste fenómeno que é abordar a ferropénia ainda antes que ela se manifeste na sua expressão de maior gravidade que é a anemia ferropénica. Do ponto de vista sintomático são muito parecidas. Praticamente existe tudo menos a anemia confirmada laboratorialmente. Muitas vezes o que acontece é que a abordagem do doente é muito feita neste aspeto – centrada na existência ou não existência da anemia – e a ferropénia não é procurada de forma ativa e pode passar entre os dedos se não houver esta atitude de procura.
RX – Considera que ainda existe uma desvalorização da ferropénia por ainda não ser um estado declarado da anemia ou considera que os profissionais estão mais despertos?
ARN – Felizmente estão mais despertos do que o que estavam, mas continuamos a ter um problema – nós quando fizemos o estudo epidemiológico empire percebemos, de uma forma muito preocupante, que na faixa da população a quem foi diagnosticada anemia durante o estudo cerca de 84% não tinha ideia que tinha anemia e quem não sabe que tem não vai à procura da ajuda necessária dos profissionais.
As pessoas têm de estar alerta, têm de valorizar esses sintomas e procurar ajuda. Isto é parte da nossa atividade: a sensibilização a nível populacional. Por outro lado, nós verificamos que a ultra especialização médica que nós temos hoje leva a que as pessoas se concentrem muito naquelas que são as patologias “nobres” das respetivas áreas de especialidade e tendem a olhar para outros fenómenos como se tivessem uma importância menor. A anemia encaixa neste conceito. Mas não deve ser assim porque a anemia é um importante fator de agravamento de muitas patologias. Nesse sentido, deve ser abordada, deve ser diagnosticada e deve ser tratada em conformidade.
RX – A anemia deve ser colocada no topo das suspeitas sempre que há um quadro clínico sugestivo?
ARN – Não tem de ser no topo, basta que não seja afastada a possibilidade e que seja procurada até porque podemos tratar uma grande franja de situações e com isso contribuir decisivamente para melhorar prognósticos, melhorar evoluções de outro tipo de patologias e também ter uma interferência muito importante ao nível da qualidade de vida dos doentes.
RX – Existem anemias ou ferropénias irreversíveis, difíceis de tratar por mais que se tente tratar acabam sempre por voltar? Há pessoas que vivem permanentemente com anemia?
ARN – Há anemias mais difíceis de tratar do que outras. Para nós há uma questão muito relevante: o tratamento da anemia é sistematicamente o tratamento da sua causa. Quando somos confrontados com uma anemia ou com uma deficiência de ferro a pergunta que se impõe sistematicamente é “porquê?” Não podemos avançar para uma espécie de atalho, para uma maquilhagem, uma suplementação inespecifica, de forma quase emocional, mas temos de ir à procura da causa. Quer na ferropénia sem anemia, quer a anemia em geral pode ser o primeiro sinal de uma doença subjacente grave e que justifica esta atitude de ir à procura do que está na raiz do problema e tratá-lo em conformidade.
Naturalmente que doentes com quadros clínicos graves, crónicos, podem ter associadas anemias difíceis de tratar, difíceis de controlar. Doentes que tenham hemorragias persistentes, nomeadamente a nível do tubo digestivo ou situações que sejam difíceis de tratar sob esse ponto de vista. Esses doentes têm uma anemia recorrente. Portanto precisamos de estar sempre a fazer um acompanhamento e atuar em conformidade, tentando corrigir a situação à medida que ela se for agravando.
RX – Qual o lugar da suplementação, tanto oral como da intravenosa? E qual o papel e contributo deste tipo de tratamentos para a correção da anemia e da ferropénia?
ARN – Continuamos centrados na ferropénia como a grande causa de anemia em geral, sendo responsável por mais de 50% dos casos. E há um conceito que importa sublinhar: o organismo não fabrica ferro. Todo o ferro “tem de vir de fora” por via alimentar. Tem de ser fornecido em quantidade e qualidade suficientes para permitir as melhores condições absortivas e não pode haver doença no único sítio onde se sabe que o ferro é absorvido que é na transição entre o duodeno e o princípio do intestino delgado. Portanto, qualquer patologia que afete este local compromete a absorção de ferro.
Quando há um desequilíbrio entre o ferro que é consumido pelo organismo e o que nós fornecemos por via alimentar, é necessária suplementação farmacológica. A primeira linha é a suplementação oral. No entanto, o ferro oral está muitas vezes associado a dificuldades de absorção nas dependências das formulações farmacológicas. Além disso, encerra uma capacidade razoável de induzir queixas a nível do tubo digestivo e gastrointestinal (náuseas, por vezes vómitos, alterações do trânsito intestinal) o que, com frequência, leva os doentes a abandonar a terapêutica. As terapêuticas de suplementação com ferro oral só são realmente eficazes se foram administradas a longo prazo – podendo chegar até aos seis meses. É difícil garantir a adesão dos doentes durante seis meses a uma terapêutica que causa desconforto, nomeadamente ao nível gastrintestinal.
Noutras situações, entre as quais a intolerância ao ferro oral ou a não resposta em tempo útil, temos um conjunto de formulações endovenosas que nos permitem cumprir, com muita facilidade e com baixíssima toxicidade ou efeitos secundários, a cobertura de ferro necessária. Podemos tratar um doente com uma deficiência grave de ferro, com uma anemia ferropénica grave numa única sessão terapêutica. Isto era impensável há 10 anos atrás. Assim, há aqui uma oportunidade, uma mudança de cenário que nos permite ter este tipo de aproximação muito objetiva, muito eficaz e com baixíssima toxicidade.
RX – Quais são os riscos do não tratamento da anemia?
ARN – A anemia não tratada é sempre uma anemia que tem tendência a agravar-se. O caso do idoso, a anemia pode representar um fator de agravamento importante de outras patologias como insuficiência cardíaca, insuficiência respiratória, doença inflamatória intestinal entre outras doenças autoimunes e vai agravar a síndrome de fragilidade associada à idade. Uma anemia vale por si própria – que já é uma condição grave – e como fator de agravamento das patologias.
ALERTA anemia
No âmbito do Dia da Anemia, assinalado no passado dia 26 de novembro, gostaria de deixar uma mensagem de valorização – valorização de sinais e sintomas que possam fazer suspeitar e procurar ajuda. A população não deve ter qualquer espécie de reserva em olhar para o que sente, valorizar eventuais mudanças no seu estado de saúde, procurar ajuda, recorrer ao seu médico especialista em medicina geral e familiar. Por outro lado, alertar para o facto de a anemia ser um problema tão comum que diz respeito a toda a comunidade médica pois é transversal, é uma condição democrática que afeta desde o nascimento até às idades mais avançadas. Portanto, abrange todas as especialidades, pode estar presente em todos os cenários. Todas as especialidades médicas devem encarar a anemia com a importância que ela realmente tem, que seja abordada de uma forma sistemática e seja tratada sempre que possível. Por esta via estamos a contribuir decisivamente para a redução da carga da doença e melhoria da qualidade de vida dos doentes.
Formar e Informar é a missão do Anemia Working Group Portugal
O Anemia Working Group Portugal – Associação Portuguesa para os Estudos da Anemia, – desde a inquietação inicial que levou à sua formação foi documentada pela perceção real de que temos um problema de saúde pública em Portugal – e isso gerou em nós um espirito de cruzada. É uma cruzada permanente que nós temos contra a anemia e essa cruzada faz-se através da informação e da formação. É este o papel que assumimos, quer a nível da população em geral, quer a nível da comunidade médica. A matriz do grupo é multidisciplinar. Percebendo que a anemia está presente nos diversos cenários médicos, o grupo em si é composto por especialistas de várias áreas médicas que encontram na anemia este ponto de convergência e interesse comum. É este o nosso DNA, a nossa matriz funcional e é isso também que se reflete na organização das nossas próprias reuniões. Neste momento reuniões com periodicidade de dois em dois anos em que juntamos diversas especialidades.
Por Cátia Jorge