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“As doenças reumáticas têm um grande impacto na sociedade civil”

“As doenças reumáticas têm um grande impacto na sociedade civil”

Luís Cunha Miranda, presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR), sublinha a necessidade de o País perceber o real impacto das doenças reumáticas. Em entrevista, o responsável fala sobre o panorama da Reumatologia em Portugal, bem como das principais apostas desta direção da SPR.

Raio-X (RX) – A direção que preside tomou posse em maio de 2018. Quais as prioridades delineadas para este mandato?

Luís Cunha Miranda (LCM) – A primeira prioridade de qualquer mandato deve ser não arruinar o que se fez bem anteriormente. Existem muitos projetos estratégicos que advêm de direções anteriores e há que manter a qualidade e, naturalmente, adicionar valor. Um dos nossos objetivos passa por inovar alguns dos aspetos da Sociedade e modernizar a forma como esta se apresenta.

RX – Nota-se a aposta desta direção em estreitar laços com a sociedade civil, inclusive nas redes sociais. Considera importante esta aproximação?

LCM – Uma especialidade que vive fechada em si mesma, por muito boa que seja, não causa o impacto desejado na sociedade.  Nesta era digital, diversificámos os canais de comunicação da SPR, até porque temos de ter em conta doentes futuros e os doentes reumáticos não são assim tão idosos, embora haja uma faixa com mais idade.  Queremos também inovar com a criação de um blogue que possibilite a interação com o público em geral, onde os reumatologistas respondam a questões dos doentes, para que possamos ser vistos como os melhores parceiros dos doentes reumáticos. Há que ter a noção da relevância de chegarmos a um novo público – aqueles que têm menos idade e uma doença reumática crónica e, por outro lado, os que têm um familiar mais idoso com a doença, mas que colocam as questões às redes sociais ou ao “doctor google”. Portanto, a SPR tem de marcar presença online para fornecer informações de qualidade. Contudo, não nos podemos esquecer dos que não têm redes sociais e, por isso, também incidimos nos media “tradicionais”. É uma aposta de futuro e passa por transformar a imagem da SPR, e da própria Reumatologia, apresentando-as como uma sociedade científica e uma especialidade de pessoas inovadoras e próximas dos doentes.

RX – Uma população informada é uma população menos doente. Isto também se aplica à Reumatologia?

LCM – Aplica-se a qualquer área da Medicina. Um doente que conheça a sua patologia e a forma como se deve comportar é um parceiro do médico na gestão da doença. O médico é um dos gestores da doença, mas o gestor principal é o doente, sendo fundamental que este – até pela diversidade de terapêuticas inovadoras – participe nas decisões. Neste sentido, também trabalhamos com várias associações de doentes, como a Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas (LPCDR), a Associação Nacional de Doentes com Artrite Reumatoide (ANDAR) e a Associação Nacional de Doentes com Artrites e outros Reumatismos de Infância (ANDAI).

RX – Como qualifica a articulação com colegas de outras especialidades que também lidam com doentes reumáticos?

LCM – É fundamental uma primeira ligação à Medicina Geral e Familiar (MGF), até pela referenciação, para a qual temos investido nos últimos anos com um programa específico para MGF no Congresso Português de Reumatologia. Mas há que ir mais além. Nesse âmbito, elaborámos um livro formativo sobre Reumatologia para a MGF, dedicado especialmente a internos. Obviamente, outras especialidades são importantes, como a Dermatologia, a Gastroenterologia e a Pneumologia, entre outras, com as quais temos de estreitar relações para uma melhor gestão combinada e partilhada do doente.

RX – Um doente reumático, muitas vezes, não é só um doente reumático. É frequente haver comorbilidades que obriguem a essa multidisciplinaridade?

LCM – Muitas das patologias reumáticas têm um complemento de autoimunidade, logo, são doenças reumáticas sistémicas, com um grande potencial de envolver outros órgãos e sistemas que terão de ser, em primeiro lugar, geridos pelos reumatologistas, mas na maioria dos casos em ligação com outras especialidades. Exemplo disso é o lúpus, com envolvimento renal ou pulmonar, ou a artrite reumatoide com implicação pulmonar, entre outras patologias que podem cruzar um conjunto de especialidades.

RX – Imagine-se daqui a 10 anos. Ao olhar para trás, qual a marca que gostaria de ter deixado na SPR?

LCM – O objetivo de qualquer direção é receber uma sociedade estável e pujante, mantê-la assim, e adicionar valor em termos científicos, financeiros e estratégicos. Se resultar numa marca, fantástico, mas seria algo presunçoso afirmarmos que vamos deixar uma marca numa sociedade científica desta dimensão e qualidade. Claro que gostávamos de deixar o nosso cunho pessoal e isso passa pela questão de tentarmos modernizar a imagem da SPR perante os outros. Não estamos a ser disruptivos, até porque não há necessidade disso.

RX – Considera que as doenças reumáticas ainda são entendidas pela população como uma inevitabilidade do envelhecimento?

LCM – Parcialmente ainda existe esse conceito, mas considero que seja principalmente na esfera política, já que a população está mais informada. Ou seja, quem gere julga que algumas especialidades, onde se inclui a Reumatologia, não são necessárias ou não têm muito impacto. O financiamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) privilegia atos médicos como as cirurgias e faz um viés grande a especialidades cujo impacto é a consulta. Hoje em dia, o reumatologista tem a capacidade de mudar radicalmente a vida de um doente. Mas como o retorno financeiro é reduzido para os hospitais, a Reumatologia e outras especialidades, como a Neurologia, a Endocrinologia ou a Infecciologia, entre outras, não são valorizadas no SNS. Os que sofrem de “reumático” (expressão que abominamos por ser um conceito ultrapassado) são os poderes políticos em Portugal. As doenças reumáticas têm um grande impacto na sociedade civil, inclusive económico, e já é hora de os poderes políticos compreenderem isso. Enquanto sociedade científica continuaremos a batalhar no sentido de provar que podemos fazer muito no que respeita, por um lado, aos custos associados ao trabalho, ao absentismo e à reforma, e, por outro, pelos cuidadores, família e, claro, pelos doentes que sofrem destas patologias e que podem ficar incapacitados.

RX – Atualmente, em termos epidemiológicos quais as principais preocupações?

LCM – Em termos globais, destaco a falta de acesso a Reumatologia numa série de hospitais, embora existam especialistas disponíveis. A nossa luta dos últimos anos é tentar que alguém explique a razão deste panorama. Em termos epidemiológicos, o impacto destas patologias é tremendo, pois algumas atingem um grande número de doentes, como as lombalgias, as cervicalgias, a osteoporose e a osteoartrose, entre outras. No âmbito mundial, o impacto das doenças reumáticas é seguramente dos mais importantes. Resta saber qual a estratégia que nós, enquanto país, vamos seguir para combater o que será um flagelo daqui a 20/30 anos, já que haverá muitos mais doentes, nomeadamente em patologias associadas ao envelhecimento.

RX – E essa estratégia passa pela melhoria do acesso à especialidade?

LCM – Isso é fundamental. Outra questão é colocar o Plano Nacional contra as Doenças Reumáticas (iniciado em 2004) novamente em prática, para o qual a SPR e todos os reumatologistas se mostram disponíveis em colaborar. Muitas vezes, o problema é que são elaborados planos que ninguém avalia. Seria bom perceber, efetivamente, o que é necessário para alcançar cuidado mínimos, intermédios e de excelência no apoio à população para tentarmos dar a melhor resposta possível.

RX – Há reumatologistas suficientes para acompanhar o aumento de doentes nas próximas décadas?

LCM – Neste momento não são assim tão insuficientes, todavia, podem e devem ser mais bem distribuídos. É fulcral que se reúnam condições para que os reumatologistas que pretendam regressar ao serviço público o façam, bem como facilitar a troca de hospitais. Entretanto, há outro ponto interessante: existem 75 internos em Reumatologia, o que significa que daqui a 5 anos haverá pelo menos 75 novos reumatologistas, um excelente número. É uma especialidade com futuro, mas este não depende só da nossa qualidade, mas também da qualidade de quem gere o sistema. Nesta perspetiva, a população portuguesa vai ter aquilo que os poderes políticos assim o entenderem, e estes, infelizmente, têm falta de visão e de estratégia. Porém, a SPR tudo irá fazer para que o Internato de Reumatologia prepare da melhor forma os internos, com o intuito de tratarem os doentes com excelência.

 

Reuma.pt  A “joia da coroa” da SPR

O reuma.pt, que vem do mandato do Dr. Augusto Faustino, começou como um registo nacional e, atualmente, “é uma ferramenta de trabalho de apoio aos médicos, à investigação e à avaliação epidemiológica das doenças reumáticas, bem como uma forma de uniformizar a abordagem”, comenta Luís Cunha Miranda, que lhe deu a atual designação. Segundo o presidente da SPR, “trata-se de uma ficha clínica eletrónica/registo, sendo também uma plataforma de projetos com outras especialidades e entidades”. O objetivo é fazer do reuma.pt uma ferramenta intemporal e “plástica”, podendo ser adaptada ao longo do tempo. “Nenhum país da Europa percebe como é que realizamos tantas consultas sem um apoio semelhante ao que que eles têm”, destaca o especialista. E acrescenta: “Em 2013, estavam registados 10 mil doentes e 60 mil consultas, e no final do ano passado 20 mil doentes e 75 mil consultas. Não é só um manancial científico para projetos, é uma forma diferente de fazer Reumatologia”.

Por Cátia Jorge