“A monitorização à distância assume um papel importante na gestão do doente com insuficiência cardíaca”
A monitorização remota de doentes com insuficiência cardíaca (IC) contribui para diminuir a necessidade de recurso aos meios hospitalares, o que se torna ainda mais relevante nesta fase de pandemia. Em entrevista ao Raio-X, Dulce Brito, cardiologista no Hospital de Santa Maria fala das causas e sintomas da IC, bem como de tratamentos, medidas de prevenção e das mais-valias da monitorização à distância na gestão desta patologia.
O que é a insuficiência cardíaca (IC)?
A IC é uma condição grave de saúde que se traduz num conjunto de sintomas e sinais devidos à incapacidade do coração para cumprir a sua função de uma forma eficaz, ou seja, a de fornecer ao organismo a quantidade de sangue necessária em cada momento. Atualmente, estima-se que esta condição afete cerca de 400 000 portugueses.
A IC desenvolve-se na sequência de patologias que afetam o coração, como a hipertensão arterial, enfarte agudo do miocárdio, doenças das válvulas cardíacas, doenças do músculo cardíaco e também devido a situações extracardíacas, como problemas da tiroide, diabetes ou obesidade, entre outras. Contudo, como a IC dá sintomas comuns a outras situações, a falta de perceção da doença leva a que não se procure ajuda médica e que o quadro clínico se agrave. É, assim, fundamental informar a população portuguesa sobre a importância do controlo e tratamento dos fatores de risco para a IC e promover um diagnóstico precoce de disfunção cardíaca, nomeadamente nos doentes em maior risco. Tal poderá levar não só a medidas de tratamento que potencialmente podem impedir o agravamento da situação e a evolução para IC clínica, como conduzir a um diagnóstico da causa subjacente, pois esta poderá ser suscetível de correção.
Quais as principais causas?
Todas as patologias que atingem o coração ou a circulação sanguínea podem causar insuficiência cardíaca. Desta forma, as causas podem ser várias e algumas podem mesmo existir em simultâneo no mesmo indivíduo. Entre as mais comuns está a doença coronária (estreitamento ou mesmo obstrução das artérias coronárias, as quais levam sangue ao próprio coração para o seu funcionamento), a hipertensão arterial (que, quando não controlada, impõe uma “carga” grande ao coração e às artérias ), as doenças das válvulas cardíacas (que podem estar presentes desde cedo ou desenvolverem-se ao longo da vida, quer por doença adquirida, quer mesmo pelo avançar da idade), doenças do próprio músculo cardíaco (“miocardiopatias”) – muitas vezes de origem genética, outras também de origem adquirida (como as associadas ao consumo de bebidas alcoólicas, substâncias ou medicamentos tóxicos para o coração, ou inflamação cardíaca de causa viral, por exemplo). Além disso, qualquer doença que provoque um aumento marcado do consumo de oxigénio e de nutrientes pelo organismo vai exigir um esforço adicional ao coração e, se não for tratada, pode originar o desenvolvimento de insuficiência cardíaca.
E sintomas de alerta?
No que respeita aos sintomas, estes decorrem da crescente incapacidade de o coração fazer chegar o sangue a todo o organismo. Os mais comuns são a sensação de cansaço/fadiga ou “falta de ar” em situações que previamente não os causavam e os edemas (nomeadamente nos membros inferiores). No doente com IC, a ocorrência de arritmias não é rara, podendo estas manifestar-se como “palpitações” ou mesmo causar perda de consciência ou até morte súbita.
O que é possível fazer em termos de prevenção?
A prevenção da IC começa com a adoção de um estilo de vida saudável, com a prática regular de atividade física, alimentação adequada, evitar hábitos nocivos como o tabagismo ou o excesso de ingestão alcoólica e evitar o stress. Associadamente, é fundamental o tratamento adequado da hipertensão arterial, da diabetes, da dislipidemia (colesterol elevado) e de qualquer outra patologia que, se já existente, possa contribuir para o desenvolvimento de IC. Junte-se ainda a importância de uma visita anual ao médico assistente e, se necessário, ao cardiologista, para que se possa identificar e tratar atempadamente as situações de risco, as quais podem desencadear o desenvolvimento da doença.
Quais os tratamentos disponíveis?
A IC pode ter diversos tratamentos, dependendo da sua causa e do tipo de disfunção cardíaca. Um diagnóstico precoce e a identificação da causa pode levar a que esta seja corrigida, permitindo que a IC não progrida e até, em algumas situações, levando à reversão do quadro do doente. Contudo, em cenários em que a IC já é avançada, com lesão cardíaca definitiva, a regressão é improvável.
Independentemente da causa, muitas das situações de IC em que a contractilidade do coração está diminuída beneficiam muito do tratamento com fármacos antagonistas neuro-hormonais, os quais permitem melhoria dos sintomas e do prognóstico, melhorando também a qualidade de vida do doente. Adicionalmente a estes fármacos, outros são também importantes para controlo dos sintomas, dos edemas e para o tratamento das arritmias, quando estas o exigem. O mesmo se aplica à terapêutica com dispositivos cardíacos, que podem ser necessários para maior melhoria e para controlo de arritmias. Por sua vez, quando a IC é muito grave e não responde de modo adequado à terapêutica pode haver indicação para transplante cardíaco.
Quais as mais-valias da monitorização remota na gestão da IC?
A monitorização à distância (remota), periódica, de determinados parâmetros do doente (biodados) assume um papel importante na gestão do doente com IC, pois já demonstrou diminuir a necessidade de recurso aos meios hospitalares e contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos doentes. Nos doentes com IC clínica, a monitorização remota pode permitir a deteção precoce de sinais de eventual descompensação (agravamento) da situação, bem como a causa dessa mesma descompensação, e, pelo tratamento atempado, pode diminuir a necessidade de (re)hospitalização, com melhoria da qualidade de vida do doente e potencialmente pode mesmo aumentar a sobrevida. Apesar da monitorização remota não invasiva poder ser útil em várias circunstâncias, torna-se um instrumento particularmente oportuno em tempos de crise, nomeadamente quando a consulta presencial se torna difícil e/ou em doentes que, pela sua situação clínica, exigem vigilância mais apertada.
A eficácia (benefício) de um programa de monitorização exige a conjugação simultânea de várias premissas, pelo que ao longo do tempo, nem todos os programas mostraram os resultados benéficos que teoricamente seriam esperados e desejáveis. É necessário que o programa seja focado para os objetivos que se pretendem, com parâmetros previamente bem definidos (que, sendo mensuráveis, sirvam esses mesmos objetivos), e aplicado por uma equipa de profissionais de saúde pronta a agir perante alterações dos biodados que sugiram possível ou provável descompensação de IC. Assim, a existência de uma equipa dedicada, coordenada, bem liderada e pronta a agir é uma das peças fundamentais num programa de monitorização remota. A outra peça fundamental, central a todo o processo, é o doente. O sucesso do programa dependerá muito da adesão do doente, não só relativamente à colheita e envio dos seus dados (sem os quais a monitorização não será possível), mas também no tocante à compreensão da sua doença e dos autocuidados e autovigilância necessários para um melhor controlo da sua situação clínica.
Por fim, é ainda importante frisar que os resultados conferidos pela monitorização remota possivelmente não serão igualmente úteis em todos os doentes. A nossa experiência tem envolvido os doentes com IC crónica em maior risco de descompensação, com défice mais acentuado da função contráctil cardíaca e que tenham sofrido episódio de hospitalização recente por descompensação de IC.
Na prática, como é efetuada essa monitorização?
Ao falarmos de monitorização não invasiva à distância, do ponto de vista prático, falamos de uma vigilância de determinados parâmetros do doente, previamente definidos e que este avalia numa base periódica (geralmente diária), e que são enviados automaticamente (via wireless) através de telemóvel para uma “estação” (plataforma eletrónica) onde são “lidos” por profissionais de saúde e interpretados de acordo com algoritmos pré-definidos. Os biodados que habitualmente são monitorizados, embora possam variar de acordo com os objetivos do programa, incluem geralmente a medição da pressão arterial, frequência cardíaca, peso, temperatura corporal, saturação periférica em oxigénio e eletrocardiograma.
Durante a monitorização, se for registado algum dado “anormal” (fora dos limites estipulados como normais para aquele parâmetro), é gerado um “alerta”, e o doente e o médico são contatos e são adotadas as ações consideradas adequadas à situação em causa. De notar que embora hajam limites considerados normais para cada parâmetro, os doentes com IC não são todos iguais e alguns podem “descompensar” a sua situação de IC com valores de biodados que são considerados normais (e bem tolerados) por outros. Assim, os valores “normais” para cada doente são decididos quando da sua inclusão no programa de monitorização remota (por duas avaliações consecutivas em momentos diferentes) e reavaliados periodicamente. A monitorização remota exige inicialmente um período de treino da parte do doente. Todos os dispositivos necessários às avaliações são colocados em casa do doente e o mesmo é ensinado (bem como os cuidadores, se for o caso) ) a fazer as medições e a transmiti-las. O processo é repetido, durante o programa, sempre que existam dúvidas ou qualquer dificuldade quer nas medições, quer na sua transmissão.
O facto de a maioria dos doentes serem idosos pode ser um constrangimento em termos de adesão, pelo papel ativo que têm no processo?
O doente tem um papel determinante na gestão e partilha de informação, sendo o elemento central da equipa. O facto de a maioria dos doentes serem idosos não é um obstáculo, o que é importante é a motivação de cada doente e o facto de se sentirem seguros. Na verdade, o processo é relativamente simples e a maior parte dos doentes, após ensino, não tem dificuldades. Claro que há sempre pessoas que não se adaptam mas são raras. A sensação de segurança por parte do doente é um importante fator de motivação, ou seja, muitos doentes com IC (ou outras doenças crónicas) sentem-se mais seguras sabendo que os profissionais de saúde estão a vigiar os seus biodados e, como tal, assumem um compromisso com o programa. Também a partilha com o doente dos objetivos pretendidos e dos resultados obtidos pode aumentar o seu nível de adesão ao programa, pois estar sempre (ou frequentemente) sob vigilância, é também um fardo pesado para o doente, que necessita ser explicado e o seu benefício compreendido e sentido.
No entanto, é importante que o doente e o médico tenham consciência que a monitorização remota pode não ser útil em todos os doentes com IC e que também não é um instrumento a utilizar para toda a vida. Aliás, exceto em situações excecionais, ninguém tolerará ser monitorizado durante períodos de tempo indefinidos. Por isso, em cada programa são necessários ajustes ao longo do tempo de monitorização. Reuniões periódicas da equipa são fundamentais para, avaliando individualmente a evolução de cada situação clínica e também avaliando o conjunto, tomar decisões em relação a modificações na estratégia de monitorização. Há doentes que não aderem a monitorização diária mas aderem a monitorização mais espaçada, por exemplo, 3 vezes por semana ou mesmo semanalmente. E possivelmente tal estratégia pode ser um caminho a seguir, nomeadamente no doente estabilizado. Por outro lado, após hospitalização por IC há sempre um período de alguns meses em que a vulnerabilidade (com risco de rehospitalização precoce) é maior e nessa fase a monitorização diária pode ser particularmente útil.
Algumas das questões em aberto em relação à monitorização remota no doente com IC incluem justamente saber quais os grupos de doentes que mais beneficiam (e aqui entra a questão do que se considera “benefício”, ou seja, quais os objetivos que se pretendem num programa deste tipo) e durante quanto tempo devem os doentes serem monitorizados. Para estas questões ainda não há resposta, há apenas que aprender com os resultados (sucessos e insucessos) dos múltiplos estudos de vida real publicados nesta área, incluindo com a nossa própria experiência, nunca esquecendo que a opinião do doente é fundamental.
Por Marisa Teixeira