COVID-19: “80% dos infetados terão doença ligeira, que vai passar com chá de limão”
A propósito da pandemia atual, o RAIO-X entrevistou Tiago Marques, infeciologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que sublinha o facto de “não estarmos completamente às escuras com este vírus”. A evolução da doença, a comparação com a gripe sazonal ou a SARS (síndrome respiratória aguda grave) e os desafios que temos pela frente foram alguns dos assuntos abordados.
Raio-X (RX) – O que sabemos deste novo coronavírus até à data?
Tiago Marques (TM) – Não é assim tão novo. Nós conhecemos algo muito próximo deste vírus desde 2002-2003, o SARS (síndrome respiratória aguda grave). Aliás, não é por acaso que esse foi nomeado de SARS-Cov-1 e este de SARS-Cov-2. No fundo, trata-se de outra estirpe da mesma espécie de vírus. Existem ainda outros coronavírus, é uma grande família de vírus humanos e animais, alguns dos quais são responsáveis por bronquite, bronquiolite infantil ou quadros de constipação. Há também os coronavírus epidémicos ou coronavírus pulmonares, que são sobretudo os SARS e o MERS (síndrome respiratória do médio oriente), embora este último pertença a outra linhagem de coronavírus. Desta vez, o que aconteceu foi uma emergência de estirpe diferente de SARS e que se comportou como o de 2002-2003.
RX – Isso significa que está a haver demasiado alarmismo?
TM – Na minha perspetiva, com certeza que o pânico não é bom para ninguém, nem que fosse a gripe espanhola [também conhecida como gripe de 1918, que matou milhões no mundo]. No entanto, não é uma situação banal para tratar com displicência. Devemos estar alerta.
RX – Os médicos estão preocupados com esta pandemia?
TM – Com certeza. Não só com a disseminação na comunidade, mas também com a propagação a nível hospitalar e de cuidados intensivos, até porque em 2003 tivemos um grande problema nesse campo. Aproveito para apelar a quem não tenha doença grave para não vir ao serviço de urgência, muito menos sem indicação de suspeita. Isto porque correm o risco de se infetarem caso não estejam e, no caso de estarem para não contagiarem outros. Por exemplo, em 2003, no Canadá, os hospitais tiveram de fechar portas exatamente por uma situação análoga. É isso que também me preocupa. Esta recomendação só começou a ser feita há pouco tempo, mas noto que a maioria das pessoas, felizmente, vai cumprindo. Mas ainda continuamos a receber pessoas nas urgências que não têm razão para lá estar. Isto é válido sempre e ainda mais em tempo de pandemia.
RX – Que outras medidas é que destaca neste contexto?
TM – As que já têm vindo a ser recomendadas pela Direção-Geral de Saúde. O distanciamento social de pelo menos um metro, principalmente de quem apresente tosse; evitar locais fechados com grande aglomeração de gente; lavar as mãos muitas vezes e evitar tocar com as mãos não lavadas nos olhos, no nariz e na boca. Sei que não é fácil, mas é algo que se treina.
RX – Faz sentido para si o cancelamento dos eventos ou o encerramento de todas as escolas?
TM – Quando se querem tomar medidas de mitigação da epidemia é isso que tem de ser feito. Custa, mas a maneira de lidar com este tipo de vírus é essa. Porque arriscamo-nos, no caso das escolas, por exemplo, a que as crianças, cuja maioria das crianças que tem contacto com o vírus não tem doença grave, contagiem pais, avós, comunidade. Portanto, quando há uma grande epidemia, uma das medidas a implementar é o encerramento dos estabelecimentos de ensino. é fechar as escolas. Em relação aos eventos, estes têm uma grande concentração de pessoas, em ambiente fechados muitos deles, propícios, portanto, há concentração deste tipo de agentes. Com este tipo de vírus temos de ser proativos.
RX – Quais as diferenças entre o COVID-19 e a gripe sazonal?
TM – Em relação ao tipo de contágio é tal e qual a gripe. No entanto, o vírus da gripe perdura meia dúzia de horas numa superfície, o COVID-19 aguenta-se, às vezes, dias. Em termos da gravidade, para o cidadão médio é igual à da gripe, 80% dos infetados terão doença ligeira, que vai passar com chá de limão. Já na capacidade de “atulhar” os cuidados intensivos não é igual à gripe, ou melhor, não é igual às gripes que temos atualmente. Poderá comparar-se às grandes pandemias do século XX, como a gripe asiática ou a gripe de Hong Kong. Se não se fizer nada pode ser a este nível.
RX – E qual é a evolução da doença?
TM – Habitualmente começa com febre, ao fim de pouco tempo tosse seca e infiltração pulmonar, que pode ser só visível na tomografia axial computorizada (TAC). Há um estudo dos nossos colegas da cidade de Wuhan, que diz que 98% dos diagnosticados com COVID-19 tem pneumonia. O critério é a TAC, nem sempre é uma pneumonia grave, muitas vezes, são as chamadas pneumonias atípicas, que são benignas. 20% destes doentes necessitam de internamento hospitalar, que deve ser feito com muita ponderação pelo risco de contágio. O melhor ainda é o que os colegas chineses têm feito: construir locais para os albergar, para que esses doentes não estejam junto dos outros. Ou então numa unidade de isolamento com pressão negativa, mas estas têm vagas limitadas, infelizmente. Por outro lado, 2 ou 3% necessitam de cuidados intensivos por insuficiência respiratória, muitas vezes rápida. Foi aquilo a que assistimos em 2003.
RX – Os hospitais estão preparados para lidar com esta pandemia?
TM – Depende da gravidade da pandemia. Se for uma situação como a de Itália ninguém está preparado, nem aqui, nem na China. É Medicina de catástrofe. Se for uma situação como, por exemplo, a pandemia de 2009 com o vírus H1N1, vamos gerindo.
RX – O que levou a uma propagação tão elevada em Itália?
Infelizmente, este é o comportamento da SARS quando se deixa “à solta”. Obviamente, o vírus em Itália não é diferente do da China ou do que temos por cá. Está no seu ADN ser um vírus pandémico, cabe a nós não o deixarmos ser. No caso italiano as medidas preventivas deveriam ter sido tomadas mais cedo, seguramente. É exatamente este tipo de medidas que visa evitar uma situação como a de Itália. Veremos se por cá ainda vamos a tempo.
RX – Quais os doentes que apresentam mais complicações?
TM – O que habitualmente temos visto são doentes acima dos 50/60 anos com comorbilidades, nomeadamente doença cardíaca, hipertensão arterial, diabetes, doença respiratória ou neoplasia. Não temos noção se os doentes imunocomprometidos clássicos sejam mais suscetíveis, estamos para descobrir. Na altura da SARS de 2003 não eram.
RX – E no caso das grávidas?
TM – A experiência que temos com a epidemia de 2003 revela que podem ter ligeiramente mais complicações do que a população da mesma idade não grávida. Parece que o vírus não é transmitido à criança. E existe, como em qualquer doença infeciosa sistémica, um risco de aborto, mas não há risco, que se saiba, de malformações ou de infeção congénita. As pneumonias na grávida, seja pela SARS, bacterianas, ou por outro vírus qualquer, são sempre mais graves do que na população não grávida. Vimos isso também com o H1N1.
RX – O motivo de internamento dos doentes prende-se sempre com o desenvolvimento de complicações ou por questões de isolamento e prevenção?
TM – Temos estado numa fase de contenção, tentando isolar os doentes o mais possível para quebrar as cadeias de contágio. Entretanto, vamos entrar na chamada fase de mitigação, ou seja, tentar ter vagas para os realmente precisam de ser internados. E fazer de tudo para que esses doentes não contagiem os outros, pois não vão deixar de aparecer casos de enfartes, AVC, etc. Por isso é que é importante não enviar um doente com suspeita de doença contagiosa sem critério. Para tentar que no hospital não se estabeleçam focos de doença contagiosa, e isto é verdade para todas elas.
RX – Devemos estar preparados para um cenário pior do que o atual?
TM – Sim. É isso que a experiência tem de nos ensinar com este vírus. Apesar de tudo não é completamente desconhecido, não estamos completamente às escuras com este vírus. Mas o que sabemos dele leva-nos a crer que a situação vai piorar rapidamente na próxima semana. O quanto vai piorar depende de todos nós tomarmos medidas para o conter. De frisar que isto não justifica a corrida desenfreada aos supermercados e esgotar o papel higiénico e as máscaras / material de proteção como já aconteceu em alguns países. É uma pandemia, não é o fim do mundo.
RX – Há quem afirme que o aumento das temperaturas irá travar o vírus. É verdade?
TM – Não sei se podemos assumir isso com um vírus pandémico, mas talvez abrande o contágio. Porque os raios ultravioletas tendem a matar estes vírus, as pessoas não estão tanto em ambientes fechados. Mas não nos devemos esquecer que a gripe asiática entrou em Portugal em agosto, portanto, um vírus pandémico pode não respeitar as regras a que estamos habituados. Mas é a esperança que temos.
Por Marisa Teixeira