Vitamina D e obesidade num país de sol e de dieta mediterrânica
Opinião de Carla Rêgo, Pediatra do HCUF Porto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e da Universidade Católica Portuguesa e investigadora do ProNutri CINTESIS
Portugal, país de sol e de dieta mediterrânea… talvez apenas na aparência!
Portugal é conhecido como um país de sol e de dieta mediterrânea. No entanto, é um dos países com maior prevalência de obesidade, nomeadamente de obesidade pediátrica e, actualmente, supõe-se que um país, tal como muitos outros, com elevada prevalência de défice de vitamina D (vitD).
Este aparente contra-senso entre “o que temos” e “o que fazemos, o que somos”, tem apenas uma explicação: a mudança do estilo de vida registada pela população portuguesa nas últimas décadas. Efectivamente, actualmente, não usufruímos do primeiro e não praticamos a segunda!
Este aparente contra-senso entre “o que temos” e “o que fazemos, o que somos”, tem apenas uma explicação: a mudança do estilo de vida registada pela população portuguesa nas últimas décadas. Efectivamente, actualmente, não usufruímos do primeiro e não praticamos a segunda!
Então vejamos.
A vitD, denominada “vitamina do sol”, é produzida na sua maioria (cerca de 90%) na pele, através da exposição ao sol, estimando-se que uma breve exposição solar dos braços e face se associe à síntese de 200 UI/d. Apenas 10% provém da ingestão de alimentos, de entre os quais há a realçar os lacticínios (leite, iogurte e queijo), os peixes gordos (salmão, sardinha, cavala …), a gema de ovo e os cogumelos, entre outros. Ao longo das últimas décadas, a mudança do paradigma de vida traduziu-se por uma fuga para as cidades, pretensamente à procura de melhores oportunidades laborais e de mais fácil acesso à cultura. Entretanto, a elevada competitividade laboral, a desestruturação da família alargada e sua substituição pela família nuclear onde os 2 progenitores trabalham, as crescentes exigências escolares das crianças/adolescentes, as questões de “insegurança” dos centros urbanos e não só, fizeram com que a rotina semanal se tenha esvaziado de tempo e de logística para andar a pé e ao ar livre. O sedentarismo tomou conta do estilo de vida das famílias portuguesas! E de um estilo de vida em que o trabalho que em grande parte sustentava toda a família (crianças e adolescentes incluídas) tinha quase sempre uma componente física e ao ar livre, em que o meio de transporte era a pé ou de outra forma que permitia a exposição solar e o exercício fisco, passou-se, há apenas 30-40 anos, para uma vida em que se sai de casa de carro, se vive na escola (ou no local de trabalho) fechado durante todo o dia e se regressa a casa novamente de carro, por vezes já ao final do dia, sem sol e com trabalhos de casa para cumprir! Até a actividade física organizada ou as actividades lúdicas extracurriculares ou extralaborais são predominantemente em espaços fechados! É pois fácil perceber que, em apenas 3-4 décadas, a população portuguesa, de uma forma mais ou menos transversal à idade e vertical às profissões mais prevalentes na sociedade, perdeu a oportunidade de “apanhar sol” e consequentemente de sintetizar regularmente vitD, mas também perdeu uma importante componente de actividade física inerente à vida quotidiana, aumentando o risco de obesidade.
Mas somos um país com uma primavera amena e um verão soalheiro, dirão alguns! Na realidade, durante os meses de primavera e verão há maior exposição solar mas … a vitamina D tem uma sobrevida (tempo de circulação) curta, e não se “armazena” durante o verão para ir sendo usada nos meses de outono e inverno! Como se tal não bastasse, sabe-se que as zonas terrestres com uma latitude norte entre 35 – 45 graus, estão associadas a menor eficácia da produção cutânea de vitD. Neste aspecto, ou seja, no que respeita à localização geográfica, é interessante referir que o Porto está a 41 graus norte e o Algarve a 37 graus norte, o que significa que o nosso país “soalheiro” não se encontra na “melhor localização” para uma maior rentabilização da radiação solar no que respeita à produção de vitD.
Mas a questão ainda não se fica por aqui, pois em todas as áreas do conhecimento mas na da saúde em particular, é necessária uma leitura abrangente! Referi previamente que, ainda que em quantidade reduzida, a alimentação é uma fonte não desprezível de vitD. Ora, neste âmbito, importa claramente alertar para as consequências das “modas” que vão tomando conta do padrão alimentar das famílias (incluindo crianças e adolescentes), fruto de muita (des)informação e com reduzido (ou inexistente) suporte na evidência e em critérios de segurança! Uma delas, sem qualquer fundamento e com riscos ainda não avaliados, é a substituição crescente dos lácteos por bebidas vegetais, resultando na perda de uma das principais fontes alimentares fornecedoras de vitD (entre outros nutrientes nobres), uma vez que, mesmo que as bebidas vegetais sejam “enriquecidas” nesta vitamina, tal facto não garante a sua biodisponibilidade (absorção e utilização pelo organismo) e, consequentemente, não se reveste de segurança nutricional. E relativamente a este aspecto apenas foco a questão da vitD, não entrando em consideração com questões mais complexas de adequação e segurança nutricional destes alimentos, particularmente durante a idade pediátrica.
E quanto à dieta mediterrânea? E à obesidade?
Estas são outras questões … Como é sabido, a prevalência de excesso de peso / obesidade em Portugal ronda os 30%, transversalmente à idade pediátrica (1-15 anos), de acordo com os resultados de vários estudos a saber: o Estudo do Padrão Alimentar e de Crescimento Infantil (EPACI Portugal 2012), o COSI e o estudo da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO). Continuamos, pois, a ser um dos países europeus com prevalências mais elevadas … muito embora sejamos uma das bandeiras da “dieta mediterrânea”. De novo, uma das explicações para esta aparente discrepância prende-se com mudanças do estilo de vida, quer no que respeita à actividade física quer ao comportamento alimentar. Sobre a primeira já foi feita uma reflexão prévia, e sobre a segunda deve ser dito que, de padrão mediterrâneo, a nossa dieta tem, actualmente, muito pouco! Necessariamente fruto da globalização de comportamentos, de muita desinformação e ainda por questões afectivo-culturais. Estas últimas prendem-se com o facto de, há apenas 3 gerações atrás, ter havido fome declarada no nosso país, razão que leva ainda hoje a associar o acesso aos alimentos de uma forma geral e aos mais doces e calóricos de uma forma particular, a uma vantagem social e a uma questão de “estatuto” perante a comunidade e a sociedade! Mas mais uma vez, na origem desta mudança comportamental global, estão sobretudo as exigências laborais e a urbanização das famílias, resultando numa mudança do tecido familiar que frequentemente “obriga” ao recurso a refeições pré-preparadas e a alimentos processados. “Desaprendeu-se” a culinária saudável, ancestral, e a noção da facilidade aliada ao pouco tempo disponível no final de um dia de trabalho e com crianças para alimentar e deitar a horas, resultou na procura crescente deste tipo de produtos. E há sempre argumentos que “suportam” a sua utilização: são mais duradouros, têm maior palatilidade, a publicidade até diz que fazem bem, não têm açúcar, não têm colesterol (quase apetece perguntar afinal de que são feitos!) … as crianças gostam! Mas já diz o ditado: “até o pobre desconfia quando a esmola é grande” ou seja, grande parte destas “vantagens” são obtidas por processamento, pela adição de aditivos/conservantes, pelo elevado teor de gordura saturada e trans- ou de açúcares simples! Motivo de reflexão (e responsabilização) social é o facto de a introdução nesta “dieta familiar” ocorrer precocemente, numa fase de extrema vulnerabilidade à programação da saúde / doença futura bem como dos comportamentos alimentares para a vida: o 2º ano de vida. Na verdade, de acordo com os dados do EPACI Portugal 2012, cerca de metade das nossas crianças regista uma frequência elevada (impune e irresponsável), de consumo de sobremesas doces, bebidas açucaradas e refrigerantes, numa base diária! Não há, pois, que espantar os números apontarem para uma prevalência de excesso de peso/obesidade em mais de 30% das crianças portuguesas … aos 12-36 meses de idade!
Perante o exposto podemos pois assumir que, o problema da elevada prevalência da obesidade (particularmente pediátrica) e o possível problema de um défice transversal à idade (pediátrica e adulta) em vitD, no nosso país, se prendem com uma mudança profunda do estilo de vida registada nas últimas décadas, e andam, provavelmente, de mãos dadas na sua génese epidemiológica.
Perante o exposto podemos pois assumir que, o problema da elevada prevalência da obesidade (particularmente pediátrica) e o possível problema de um défice transversal à idade (pediátrica e adulta) em vitD, no nosso país, se prendem com uma mudança profunda do estilo de vida registada nas últimas décadas, e andam, provavelmente, de mãos dadas na sua génese epidemiológica.
A realidade da vitamina D: Portugal e o mundo
A vitD ultrapassa a mera função de garantir a formação e manutenção da massa óssea (através da regulação do metabolismo do cálcio e do fósforo), para interferir, como cofactor, em reacções necessárias ao funcionamento do organismo (existem receptores para a vitD nas células de quase todos os órgãos que são sensíveis aos níveis circulantes desta vitamina), assumindo assim um papel “hormonal” importante.
Mas será esta preocupação com o défice de vitD e das suas consequências exclusiva de Portugal? Estima-se que cerca de metade da população mundial apresenta valores compatíveis com o diagnóstico de insuficiência de vitD, transversalmente às diferentes faixas etárias. No que respeita particularmente à população pediátrica, a literatura documenta prevalências elevadas de insuficiência em crianças e adolescentes da Europa e dos Estados Unidos da América. Em Portugal, são escassos os dados relativos ao status de vitD, apontando um estudo realizado em crianças e adolescentes saudáveis do norte do país para valores de inadequação em 92,5% da população, da qual 44,8% apresentava insuficiência e 47,8% deficiência moderada a grave (APP, 2016). Importa referir que a European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepathology and Nutrition (ESPGHAN, 2013) definiu como ponto de corte para a caracterização de suficiência em vitD em crianças e adolescentes uma concentração sérica de 30 ng/mL, enquanto concentrações inferiores a 10 ng/mL são indicativas de deficiência grave, tendo por base a salvaguarda da saúde óssea.
Funções e importância da VitD
A função da vitD no crescimento e na saúde do osso é, à luz do conhecimento actual, apenas a ponta do iceberg. Efectivamente, a vitD regula a expressão de mais de 200 genes e tem receptores nas células de quase todos os órgãos. Daqui se depreende que a saúde e o bem-estar, suportados no bom funcionamento da maioria dos órgãos e sistemas do corpo humano, dependem de adequados níveis circulantes desta vitamina. A vitD aumenta a absorção de cálcio e fósforo no intestino, aumenta a mineralização do osso, induz a diferenciação de células do nosso sistema imunológico, interfere na resposta inflamatória e na condução neuromuscular, inibe a proliferação de células tumorais … sendo pois fácil entender os seus múltiplos benefícios para a saúde. Na idade adulta, há a destacar a associação entre adequação em vitD e redução do risco de doenças crónicas tais como doenças auto-imunes, neurológicas, cancro e doença cardiovascular entre outros.
Grupos de risco e doses diárias recomendadas
Considerando o papel histórico da vitD – a formação de massa óssea – a idade pediátrica torna-se, sem dúvida, o período da vida mais determinante. A aquisição do pico de massa óssea (valor máximo de “dureza” do osso que cada individuo pode atingir tendo em conta a sua genética e vários factores externos influenciadores) ocorre cerca dos 18-22 anos. Este depende, entre outros, de níveis séricos adequados de vitD e de cálcio, bem como de uma alimentação equilibrada e variada e de um estilo de vida activo. Importa referir que as bebidas carbonatadas (gaseificadas artificialmente), tais como os refrigerantes, para além de estarem associados a maior risco de obesidade cursam com risco de compromisso de massa óssea de uma forma directa (compromisso da fixação de osso) e indirecta (ao reduzirem a ingesta de lacticínios).
Importa referir que existem certas doenças que se associam a défice de vitD, tais como doenças renais ou hepáticas, doenças que comprometam a absorção intestinal de nutrientes, doenças endócrinas que cursem com alterações hormonais que interfiram com o metabolismo do cálcio e ainda crianças/adolescentes sujeitos a medicação frequente com anti convulsivantes, corticóides ou anti-retrovirais. Nestes casos, a suplementação farmacológica tem indicação terapêutica pelo que compete ao médico assistente a sua prescrição bem como a monitorização dos níveis séricos da vitamina.
Finalmente, se considerarmos um individuo saudável, este deve ser considerado “em risco” de desenvolver défice de vitD nos seguintes casos: a) crianças ou adolescentes com pouca exposição solar particularmente durante os meses de outono, inverno e primavera; b) indivíduos de pele escura; c) viver em latitudes norte (35 a 45 graus); d) uso abusivo de protectores solares (pois interferem com a produção cutânea de vitD), pelo que se aconselha a ser prudentemente balanceada a sua utilização visando a protecção e a redução do risco de envelhecimento cutâneo e de cancro de pele, mas garantindo a síntese adequada desta “vitamina do sol”; d)défice materno durante a gestação (pois está associado a riscos na gravidez de ocorrer pré-eclampsia, diabetes gestacional e compromisso do crescimento do feto bem como a níveis baixos na criança durante pelo menos os primeiros 4 anos de vida; e) indivíduos com obesidade (por possível castração desta vitamina lipossolúvel no tecido adiposo, com redução dos seus níveis circulantes).
As doses recomendadas de ingestão diária de vitD para prevenir uma situação de défice, variam de acordo com a idade. Assim, durante o 1º ano de vida são de 400 UI /dia, dos 1- 70 anos entre 600 – 800 UI/dia e a partir dos 70 anos de 800 UI //d. Pelo atrás exposto, os indivíduos de pele escura, a grávida, a lactante e o obeso poderão ter necessidades mais elevadas.
Quem deve então realizar suplementação (farmacológica) com vitD?
Tendo em conta as recomendações acerca da suplementação com vitD para indivíduos saudáveis, ela apenas é universal (significa que todos a devem fazer, independentemente do local onde nascem e da raça) durante o 1º ano de vida ou, caso a criança complete o ano durante os meses de outono, inverno ou primavera, deve ser mantida até ao verão. Um alerta foi lançado pelo Estudo do Padrão Alimentar e de Crescimento Infantil (EPACI Portugal 2012) ao constatar que cerca de 30% dos lactentes portugueses não cumpriam esta recomendação! Na infância, adolescência e idade adulta deve ser recomendada a promoção de um estilo de vida activo com exposição solar quase diária, tendo em particular atenção os meses de outono e inverno e claro, salvaguardando a protecção da pele nas horas em que esta está recomendada. Caso esta premissa não seja cumprida e/ou haja suspeição de risco de carência/défice, deverá ser equacionada a suplementação farmacológica. Importa, no entanto, referir que esta decisão cabe, sempre, ao médico assistente.
Nota: Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico