Patologia do sono: da clínica à legislação
Numa sessão que teve lugar no XXVI Congresso de Pneumologia do Norte, que decorreu no Porto, na semana passada, Marta Drummond falou sobre a evolução do conhecimento em torno da síndrome da apneia obstrutiva do sono ao longo das últimas décadas, desde a sua potencial relação com a patologia cardiovascular ao eventual risco acrescido de demência. A pneumologista do Centro Hospitalar de São João alertou ainda para o não cumprimento da legislação europeia que prevê uma avaliação específica dos doentes com apneia obstrutiva do sono relativamente à permissão para conduzir.
Voltando dez anos atrás no calendário, a especialista explicou que a convicção de que a síndrome de apneia obstrutiva do sono está estreitamente relacionada com o aumento do risco cardiovascular começa agora a ser questionada. Na realidade, “hoje em dia, esse paradigma mudou e pensa-se que a presença de apneia obstrutiva do sono possa reduzir o risco cardiovascular, representando um potencial benefício, pelo menos, em alguns doentes, o chamado condicionamento isquémico”, descreveu.
Esta mudança de paradigma revela que, ao longo do tempo, o avanço do conhecimento, através da investigação, vai trazendo novas evidências que, por vezes, vêm contrariar as que até então eram válidas. “E isto tem implicações na forma como tratamos os nossos doentes. Aquilo que é hoje o nosso conhecimento científico pode mudar à medida que novas evidências vão surgindo”, acrescentou.
Aliás, ainda no contexto da evolução do conhecimento, a pneumologista falou sobre uma corrente recente de estudo sobre as consequências da síndrome de apneia obstrutiva do sono no desenvolvimento cognitivo do ser humano. “Segundo esta corrente, há um risco acrescido de demência em indivíduos que sofrem de apneia obstrutiva do sono numa fase mais avançada das suas vidas ou até numa meia-idade”.
Igualmente recente é a convicção de que, à semelhança de outras patologias respiratórias, como a DPOC ou a tuberculose, também a síndrome de apneia obstrutiva do sono é mais comum em indivíduos com condição socioeconómica mais frágil. “Isto obriga-nos a ter cada vez mais atenção às questões sociais e económicas para que possamos prevenir a doença”.
Esta relação entre o status socioeconómico e a patologia respiratória do sono pode estar associada à obesidade, ao consumo de álcool, ao sedentarismo e ao tabagismo. “Infelizmente, hoje em dia, é mais barato comer mal do que comer bem”, afirmou a especialista, acrescentando que comer mal significa ingerir alimentos ricos em gorduras e açúcares que contribuem para o ganho de peso.
Por outro lado, adiantou Marta Drummond, “o facto de se ter menos capacidade económica e social faz com que se tenha menos a noção dos riscos, que se faça uma vida menos saudável, provavelmente respeitando menos a necessidade de praticar exercício com regularidade, de não consumir álcool à noite, de não fumar. E hoje em dia, ao contrário do que acontecia no passado, o consumo de tabaco está também mais concentrado nas classes sociais mais baixas”. Há, portanto, uma conjugação de fatores que concorrem para esta relação entre o estatuto socioeconómico e o risco de síndrome de apneia obstrutiva do sono.
“Legislação europeia não está a ser cumprida”
Da clínica para a legislação, Marta Drummond alertou para o atual incumprimento nacional da legislação europeia aprovada “há já alguns anos” para todos os Estados Membros. Trata-se da legislação sobre a atribuição/ renovação de licenças de condução a pessoas que sofrem de síndrome de apneia obstrutiva do sono. “Essa legislação está em vigor, contudo, não é aplicada porque não existem, no Serviço Nacional de Saúde, estruturas para despistar este problema em condutores deste grupo 1 e reavaliar periodicamente, como sustenta a lei, os condutores profissionais com síndrome de apneia obstrutiva do sono sob tratamento”. De acordo com a pneumologista, “a legislação europeia não está a ser cumprida e o seu não cumprimento não é fiscalizado. Neste momento, vivemos à margem desta diretiva europeia e seria bom que a conseguíssemos implementar”, concluiu.
Por Cátia Jorge