“Não há pandemia nenhuma que desapareça sem infetar uma grande parte da população”
Em entrevista ao Raio-X, Tiago Marques, infeciologista no Hospital de Santa Maria, comenta o atual cenário da pandemia de COVID-19, referindo não estar surpreendido com os números mais recentes em Portugal e considera muito provável atingirmos um contexto de Medicina de catástrofe. Para o especialista, embora não se conseguisse parar o contágio, “o Serviço Nacional de Saúde deveria ter-se preparado desde março, criando estruturas para albergar os doentes e antecipando uma melhor capacidade de resposta em crise”.
O que levou aos números atuais de doentes com COVID-19?
Em primeiro lugar, não se pode obrigar as pessoas a resguardarem-se para sempre e o SARS-CoV-2 é extremamente contagioso. Além disso, os vírus respiratórios são sazonais, tendem a agravar no tempo frio, em que as pessoas estão mais juntas e não há radiação ultravioleta para os matar. Os vírus pandémicos, em particular, persistem no tempo quente, mas são ainda piores no tempo frio. Penso que faltou a perceção de que estarmos bem no verão não significava que iríamos estar bem para sempre, embora tenha sido amplamente avisado.
As medidas tomadas têm sido suficientes?
Só agora, com estas novas medidas de confinamento, provavelmente se vão conter os contágios. De acordo com vários estudos, para que haja algum efeito no ritmo de contágio tem de se diminuir 60 a 80% dos contactos entre as pessoas, o que implica um confinamento extremo. Porém, há que ter a noção de que quase todas as pessoas vão contactar com este vírus. Não há volta a dar.
É também importante perceber que achatar a curva não é acabar com ela, mas sim torná-la tolerável pelos serviços de saúde. Não há pandemia nenhuma que desapareça sem infetar uma grande parte da população, o que não implica que as pessoas fiquem todas doentes. Muitos têm contacto com o vírus e não adoecem, muitos curam-se em casa.
Numa entrevista ao Raio-X no início da pandemia comentou que 80% dos doentes se curam com chá de limão. Confirma-se?
Exatamente. O problema não são os 80%, mas sim os 5% que ficam com doença crítica, pois se todos forem parar aos Cuidados Intensivos ao mesmo tempo não há hospitais que aguentem. O inverno tradicionalmente é complicado para as unidades de saúde, com um vírus pandémico ainda mais.
Esperava que se chegasse a este ponto?
Infelizmente, não me surpreende nada. Em relação aos contágios, não os conseguiríamos evitar. Contudo, o Serviço Nacional de Saúde deveria ter-se preparado desde março, criando mais cedo estruturas para albergar os doentes e antecipando uma melhor capacidade de resposta em crise. Por exemplo, não é aceitável que haja uma pandemia respiratória e haja rutura de stocks ao fim de um ano. Uma pandemia destas é imparável, pode é ser gerível e houve coisas que falharam.
Ainda vamos a tempo de travar um cenário ainda pior?
Julgo que não vamos a tempo de evitar um inverno como o de 1968 [a pandemia de Hong Kong matou entre 1 a 4 milhões], o que se pode fazer para não piorar ainda mais é o que está a ser feito neste momento, fechar tudo. E eu sou totalmente anticonfinamento, mas nesta fase não há outra hipótese, é a solução mais rápida.
Deveriam ter sido tomadas medidas mais atempadamente?
O confinamento não, mas deveria ter-se antecipado o pico de procura de cuidados de saúde, estamos a sofrer por falta de antecipação. Vou dizer algo controverso – em termos de contágio, não sei se não deveríamos “ter aberto mais” no verão. Se as pessoas se contagiassem nessa época não se iriam contagiar agora, e o vírus no tempo quente não se dissemina tanto. No fundo, pode imaginar a pandemia como se fosse um rio de casos. Colocou-se uma barragem que não conseguiu aguentar e agora rebentou. Aproveitava-se o verão para aumentar a imunidade, embora para estes vírus a imunidade seja relativa. Se reparar, os suecos têm muitos casos – quanto mais testam, mais há – mas têm metade dos doentes ou menos em Cuidados Intensivos comparando com Portugal.
Considera o caminho sueco um bom exemplo?
Acho que funcionou. Não há uma saída airosa de uma pandemia destas. O caminho sueco foi aquele que todos seguimos noutras pandemias, os suecos não são experimentalistas. Ou lembra-se de termos fechado tudo em 2009 [pandemia de gripe A]? No entanto, o confinamento é útil como uma medida de controlo rápido do ritmo de infeção, o que se deve fazer neste momento. Um confinamento durante um ano está votado ao fracasso. Por um lado, continua a espalhar-se o vírus, e, por outro, as pessoas começam a fartar-se e a deixar de cumprir, é o que está a acontecer. Esta estratégia não é sustentável a longo prazo e foi isso que os suecos perceberam.
Este vírus é pior do que se pensava inicialmente?
Está a comportar-se como o esperado, os vírus respiratórios evoluem. Não é uma gripe, mas comporta-se um pouco como tal. Mas atenção! Temos de comparar com uma gripe pandémica, como a asiática, em 1957, ou a de Hong Kong, em 1968. Uma pandemia de gripe ou de um vírus desse género não mata 50% da população, o problema é que mesmo que cause doença grave a uma pequena percentagem leva à disrupção dos serviços, por serem muitas pessoas a necessitarem de cuidados de saúde em simultâneo.
Só é possível tentar travar uma epidemia destas de duas formas: achatando a curva ou ampliando a capacidade. A mistura das duas estratégias é o ideal, mas requer tempo. Desde março que se devia ter feito um plano de escape caso não ficasse tudo bem. infelizmente, não houve um plano B credível. As medidas no Natal não ajudaram, mas vai muito além disso. O número de doentes críticos e sobretudo de mortes tem vindo a aumentar de forma consistente desde as primeiras semanas de dezembro.
Infelizmente, não vamos conseguir evitar o caos. Neste momento quase todos os milhares de casos diários são sintomáticos, já há dificuldade em fazer rastreios. Portanto, 80 a 85% trata-se em casa com chá de limão, 10% tem doença que necessita de internamento ou pelo menos de ir as urgências, e 5% tem doença crítica. Se por dia forem 10 mil doentes, 500 estão em cuidados intensivos. Ficaria surpreendido se não chegarmos a um contexto de Medicina de catástrofe.
Por Marisa Teixeira