Cancro da mama: “Os tratamentos mais antigos são os que têm maior impacto na sobrevivência”
Um diagnóstico cada vez mais precoce e o acesso a “bons tratamentos” para os tumores de natureza mais agressiva são, segundo Fátima Cardoso, os dois fatores que mais têm contribuído para a melhoria dos resultados de sobrevivência e qualidade de vida nos doentes com cancro da mama. De acordo com a oncologista e investigadora da Fundação Champalimaud, a inovação “é sempre bem-vinda”, contudo, “os tratamentos mais antigos continuam a ser os que têm maior impacto na sobrevida dos doentes”. A disponibilização de um biossimilar do trastuzumab, um medicamento tradicionalmente utilizado em cancro da mama do tipo HER2 positivo, vai, na perspetiva da especialista, aliviar a carga financeira do SNS e facilitar o acesso a outros tratamentos mais caros. Leia aqui a entrevista e conheça os resultados dos estudos desenvolvidos com ABP 980 (biossimilar de trastuzumab), apresentados em primeira mão no congresso da European Society of Medical Oncology, em setembro passado.
Raio-X (RX) – Neste momento, o cancro da mama está entre os tipos de tumores que têm melhores resultados de sobrevivência?
Fátima Cardoso (FC) – Não é o que tem melhores resultados, mas dentro dos chamados principais ou mais frequentes, é dos que tem bons resultados. De uma forma global, a taxa de cura do cancro da mama ronda os 70%. No entanto, há muitos subtipos de cancro da mama e os resultados não são iguais para todos. Os prognósticos são diferentes. Temos sempre de olhar para os restantes 30%.
RX – Estes resultados devem-se a um diagnóstico cada vez mais precoce, também fruto da sensibilização, ou devem-se ao aparecimento de novas ferramentas terapêuticas que permitem tratar mais eficazmente o cancro da mama?
FC – Ambos os fatores têm a sua cota parte de influência. É extremamente importante o diagnóstico precoce e o rastreio porque a taxa de cura está diretamente relacionada com o momento em que é feito o diagnóstico. Quanto mais avançado e alastrado estiver o tumor no momento do diagnostico, pior será o prognóstico e mais reduzida a probabilidade de cura. Por outro lado, o diagnóstico precoce, por si só, não é suficiente. Por vezes, o diagnostico é feito quando o tumor tem uma dimensão ainda pequena, mas uma natureza mais agressiva e, se não houver bons tratamentos para combater eficazmente essas etiologias, também não conseguiremos melhorar o prognóstico. Consideramos que o contributo é quase metade para cada lado. Por um lado, pesa o diagnóstico precoce, por outro pesam os bons tratamentos. Não diria novos, porque os tratamentos que têm mais impacto na sobrevida ainda são os mais antigos.
RX – As mulheres portuguesas já estão despertas para o diagnóstico precoce e para o autoexame?
FC – Globalmente, podemos dizer que a maioria das pessoas estão bem informadas acerca dos sinais de alarme, acerca da necessidade de fazer rastreio. Penso que, de uma forma geral, no país, podemos dizer que sim, mas é muito diferente consoante a zona do país que estamos a falar. É diferente se estivermos a falar numa zona mais rural, ou numa zona mais citadina, é diferente também consoante a idade: as mulheres mais jovens tendem a estar melhor informadas, até por causa da internet e da disponibilidade de informação que existe. Por outro lado, temos, em Portugal, o chamado rastreio populacional que é organizado pela Liga Portuguesa Contra o Cancro, que tem uma boa cobertura a nível nacional e que funciona bem. Ainda assim, é sempre importante continuar a informar e sobretudo garantir que as pessoas não tenham medo de recorrer ao médico se tiverem um sinal de alarme, porque os casos piores são aqueles em que as pessoas até notaram os sintomas e as alterações, mas preferiram esconder e não vir ao médico.
Tumores do tipo triplo negativo têm menos opções terapêuticas e perfil mais agressivo
RX – Na perspetiva terapêutica, referiu que os tratamentos mais antigos são os que têm maior impacto em termos de sobrevivência. Referia-se, por exemplo à radioterapia, à quimioterapia, e às terapêuticas dirigidas?
FC – É importante saber que nós temos três grandes tipos de cancro da mama e os avanços e as terapêuticas são diferentes para cada um deles. Temos os tumores hormonodependentes, que são os mais frequentes, correspondendo a cerca de 65 a 70% de todos os casos de cancro da mama. Temos depois o cancro da mama HER2+ que correspondem a, mais ou menos, 15 a 20%. Temos ainda o cancro da mama do tipo triplo negativo, que é, até ao momento, aquele que tem menos opções terapêuticas e um prognóstico mais reservado.
RX – Quando faz um diagnóstico a uma doente esse é o mais temido, é aquele que mais receia ver no resultado da biópsia?
FC – Sim. Em relação aos tumores HER2+ tem havido mais avanços em termos de tratamentos inovadores, mais precisamente tratamentos dirigidos e tratamentos biológicos que tentam atacar as células tumorais poupando as células normais, dando, por isso, menos efeitos secundários. Nestas últimas décadas, tem-se desenvolvido e validado, tanto em cancro avançado como em cancro precoce, tratamentos anti-HER2 que mudaram completamente o prognóstico deste tipo de tumores. O primeiro destes agentes anti-HER2 foi o trastuzumab, que apareceu nos anos 90 para a doença metastática e, no início dos anos 2000, foi aprovado para a doença precoce. Este medicamento é muito utilizado e, neste momento, já estão disponíveis biossimilares. Para o subtipo mais frequente, o hormonodependente, existe a hormono-terapia, dentro da qual se destaca o tamoxifeno, que começou a ser utilizado nos anos 90 e que é um dos medicamentos que mais vidas tem salvo, e os inibidores da aromatase, que surgiram mais tarde, e que são utilizados no tratamento da doença precoce, mas também na doença metastática. Para os tumores do tipo triplo negativo, as opções são, infelizmente mais limitadas pois apenas podemos utilizar a quimioterapia para além dos tratamentos locais (cirurgia e radioterapia).
“Trastuzumab, para o cancro da mama, e o rituximab, para os tumores hematológicos marcaram mudança do paradigma terapêutico”
RX – Relativamente ao trastuzumab, trata-se de um medicamento que faz parte das chamadas terapêuticas dirigidas. Podemos dizer que foi um dos primeiros passos da Oncologia personalizada?
FC – O trastuzumab, para o cancro da mama, e o rituximab, para os tumores hematológicos, foram os primeiros tratamentos biológicos dirigidos que marcaram uma mudança de paradigma terapêutico. Depois desses já se desenvolveram muitos outros.
RX – Todos eles trouxeram, de alguma forma, um benefício acréscido em termos de sobrevivência e de qualidade de vida?
FC – Não posso dizer isso de uma forma generalizada. Dentro ds tratamentos anti-HER2, o trastuzumab é um deles, depois existe o pertuzumabe, existe o T-DM1; esses são os medicamentos que consistentemente têm mostrado uma vantagem de sobrevida do cancro metastático dois deles no cancro precoce. São bem tolerados, e por isso não têm grande impacto na qualidade de vida. Mas nem todos os agentes biológicos se comportam dessa maneira. Há agentes biológicos que dão algum benefício ao nível do controlo da doença, porque têm boas taxas de resposta e aumentam a sobrevivência livre de progressão, mas depois isso não se traduz num prolongamento da vida e, por vezes, até têm uma toxicidade relevante.
RX – No congresso da ESMO, um dos principais argumentos a favor do aparecimento de biossimilares do trastuzumab foi a possibilidade de oferecer a mais mulheres o tratamento com este medicamento e, ao mesmo tempo, facilitar o acesso a tratamentos mais inovadores, através da poupança de recursos. Em Portugal existem problemas de acessibilidade aos medicamentos?
FC – Felizmente, no nosso país, não há dificuldade de acesso ao trastuzumab, de uma forma geral. No entanto, é inegável a sobrecarga que as doenças oncológicas representam para o sistema nacional de saúde. A disponibilização de um medicamento biossimilar que tem exatamente a mesma eficácia e segurança, por um preço mais reduzido vai permitir aliviar essa carga e canalizar os recursos para outras áreas prioritárias, nomeadamente o acesso a outros tratamentos inovadores e mais caros. Dentro de 15 anos o cancro vai afetar uma em cada duas pessoas, neste sentido, é preciso reorganizar os cuidados oncológicos. O problema de financiamento não se coloca apenas no sistema público, mas também no privado. Quando as pessoas compram um seguro de saúde, têm de pensar que para este lhes cobrir a totalidade dos tratamentos oncológicos de que, eventualmente, venham a precisar, tem de ter um plafon alto.
RX – Reduzir os encargos para facilitar a acessibilidade acaba por ser uma preocupação também dos sistemas de saúde?
FC – Sim, a sobrecarga que estes tratamentos anti-HER2 trazem, seja para todos nós, através do SNS, seja para as pessoas que têm os seus seguros de saúde, é muito grande. Aquilo que se pretende com os biossimilares é a possibilidade de ter acesso a estes medicamentos mais baratos, permitindo – se tudo for organizado de uma forma correta dentro de cada país – que o dinheiro que se poupa possa ser investido na aquisição de outros medicamentos que ainda estão dentro das patentes, que são caros e para os quais ainda não existem biossimilares ou genéricos mais baratos.
“As regras de aprovação de um biossimilar são muito restritas”
RX – Do ponto de vista clínico, confia num biossimilar da mesma forma que confia num original?
FC – Confio, isto porque os biossimilares não são iguais aos genéricos. Infelizmente, e é uma coisa que eu acho que devia ser mudada, o controlo sobre a qualidade dos genéricos deixa um bocado a desejar e poderia ser melhor. Ninguém controla a quantidade de princípio ativo que existe em cada genérico. O mesmo não acontece com os biossimilares para os quais é definido um programa de investigação muito exigente, com o objetivo de demonstrar a biossimilaridade. A eficácia, a qualidade e a segurança têm de ser demonstradas, tal como para um medicamento original.
RX – O que é, afinal, um biossimilar?
FC – Um biossimilar é uma molécula que é produzida num sistema vivo, ou seja, através de uma linha celular. Há uma série de processos de controlo que ocorrem a nível da FDA, nos Estados Unidos da América, e da EMA, na Europa, que obrigam a provar que o biossimilar é realmente similar ao produto original. Até existem regras que dizem que não pode ser melhor, porque se for melhor não é um biossimilar, é um novo medicamento. As regras de aprovação de um biossimilar são muito restritas, pelo que, se a FDA e a EMA confiam, eu confio também.
RX – Num doente oncológico que já está a receber trastuzumab, recomenda-se a transição para o biossimilar?
FC – Aquilo que é recomendado – e aliás, há um artigo de opinião publicado pela ESMO, onde está clara a nossa posição em relação aos biossimilares – é que esta transição pode ocorrer. Isto porque a transição já foi testada em ensaios clínicos de biossimilares e não houve efeitos secundários. Na minha opinião, o que não convém é fazer esta mudança de medicamento muitas vezes. Há uma certa diferença entre os diversos agentes, mesmo entre os vários biossimilares. Penso que não há qualquer problema em mudar uma vez, mas começando a fazer um certo tratamento, deve tentar manter-se esse tratamento. Este problema vai-se colocar porque vão chegar ao mercado vários biossimilares do trastuzumab e é muito importante que o doente não ande a saltar de um para outro a cada novo ciclo terapêutico que inicia. Tudo isto tem de ficar muto bem definido, sobretudo ao nível da farmácia hospitalar que é quem disponibiliza o tratamento.
RX – Quais são os riscos de experimentar vários biossimilares se, na realidade, todos têm de demonstrar a mesma eficácia e segurança?
FC – A transição sistemática pode levar a alterações imunológicas por se tratar de um medicamento biológico. Não podemos correr o risco que isso aconteça nos biossimilares. Por isso pedimos aos reguladores que tenham esta sensibilidade e mecanismos implementados, para garantir a disponibilidade de todos os medicamentos.
“Doentes metastáticos estão, habitualmente, esquecidos e abandonados”
RX – De uma forma geral, que que mudanças gostaria de ver no tratamento do cancro da mama?
FC – Tenho dedicado a maior parte da minha carreira e, sobretudo, os últimos 15 anos, a lutar pelos doentes com cancro avançado, que é um grupo que tem estado esquecido e abandonado por todos, inclusive pelos media e pelas próprias organizações de apoio aos doentes. Com os medicamentos de que dispomos, ainda não conseguimos curar esses doentes. Para eles não há um final feliz. Mas isso não significa que não lhes seja garantida uma vida digna. Há coisas que eles ainda podem e querem fazer e que, não só não aumentam os gastos, como ainda permitem poupar. Muitos destes doentes sentem-se uteis e pedem para voltar a trabalhar, mas as empresas não oferecem condições para que tenham, por exemplo, um horário reduzido, tolerância para irem às consultas fazerem os seus tratamentos. São doentes que, antecipadamente, são reformados quando, na realidade, ainda se sentem capazes. Estivemos recentemente no Parlamento precisamente a lutar pelos direitos e pelas necessidades dos doentes com cancro avançado. Portugal está neste momento a reorganizar o registo oncológico e seria o momento ideal para tornar obrigatório o registo de recidivas. Isto porque o registo atual reporta o diagnóstico e a morte, mas não regista o momento das metástases. Por esse motivo, não sabemos quantas pessoas vivem, atualmente, com cancro da mama avançado ou com qualquer outro tumor avançado. Não há estatísticas. Não há dados epidemiológicos.
RX – A existência desses dados iria permitir uma canalização mais justa dos recursos prestados a esses doentes?
FC – Exato. Temos de saber quantos doentes com cancro avançado existem e o que é que eles precisam para lhes podermos disponibilizar os recursos essenciais. Aquilo que eu gostaria e aquilo pelo que nos temos debatido é a melhoria do tempo de vida dos doentes metastáticos e a melhoria da sua qualidade de vida.
RX – Foi para isso que foi desenvolvida a Aliança Global pelo Cancro da Mama Avançado?
FC – Precisamente. Criámos uma carta onde constam os 10 principais objetivos para os próximos 10 anos no âmbito dos doentes com cancro metastático. E são objetivos realistas, não ambicionamos a cura do cancro, porque sabemos que isso não vai acontecer na próxima década. São objetivos realistas e todos eles precisam e podem ser implementados em Portugal.
Os 10 objetivos definidos na Carta são os seguintes:
- Duplicação da média de vida para doentes com cancro da mama avançado até 2025;
- Melhorar a qualidade de vida dos doentes com cancro da mama avançado na prática clínica;
- Ter dados robustos sobre a epidemiologia e evolução dos doentes com cancro da mama avançado;
- Aumentar a disponibilidade e o acesso a cuidados multidisciplinares, incluindo apoio paliativo, de suporte e psicossocial para doentes, famílias e cuidadores por forma a assegurar que os doentes têm a melhor experiência de tratamento possível;
- Lutar para que todos os doentes com cancro da mama avançado tenham apoio financeiro para o tratamento e diferentes tipos de assistência, caso sejam incapazes de trabalhar;
- Oferecer treino em comunicação a todos os profissionais de saúde;
- Fornecer ferramentas de informação específicas, adequadas e atualizadas para todos os doentes com cancro da mama avançado que desejem;
- Aumentar a compreensão e informação do público sobre o cancro da mama avançado;
- Melhorar o acesso a serviços de apoio não clínicos para os doentes com cancro da mama avançado;
- Proteger os direitos de trabalho dos doentes com cancro da mama avançado.
ABP 980, o biossimilar que demonstrou a mesma eficácia e segurança que trastuzumab
A Amgen apresentou no congresso da ESMO, em setembro passado, os resultados de um estudo de fase 3, no qual foram avaliadas a eficácia e segurança de ABP 980, um biossimilar de trastuzumab, em comparação com o medicamento original, em doentes com cancro da mama em estádio precoce HER-2+. Os dados de eficácia, segurança e imunogenicidade confirmaram o ABP 980 como biossimilar de trastuzumab, contribuindo para o aumento da evidência clínica em avaliação pela EMA e pela FDA.
“Os biossimilares têm o potencial de proporcionar a mais doentes o acesso a terapêuticas de elevada qualidade com perfis de segurança e eficácia comprovados”, afirmou Serafim Morales, oncologista do Hospital Universitário Arnau de Vilanova, Lleida, Espanha. “Os resultados apresentados vêm juntar-se aos que já existiam e reforçar a biossimilaridade entre ABP 980 e trastuzumab”.
Como endpoint primário foi avaliada a diferença de risco (DR) e a razão de risco (RR) de resposta completa no tecido mamário e gânglios linfáticos auxiliares.
“48% e 40,5% dos doentes no braço ABP 980 e no braço trastuzumab, respetivamente, alcançaram resposta patológica completa. A DR e a RR de resposta patológica completa foram de 7,3 e de 1,19, respetivamente”, descreveu o especialista.
A frequência, o tipo e a gravidade dos efeitos adversos foram semelhantes entre o biossimilar ABP 980 e o trastuzumab. Não foram detetados novos sinais de segurança, em comparação com o perfil de segurança conhecido de trastuzumab.
Por Cátia Jorge e Margarida Queirós