Maria Manuel Claro: Perspetiva de uma internista
No rescaldo do debate da eutanásia no Parlamento, onde foi aprovada na generalidade, deixamos aqui mais uma opinião, a cargo de Maria Manuel Claro, internista e especialista em Cuidados Paliativos no Hospital CUF Porto.
“E regressa ao Parlamento a discussão sobre Morte Assistida…
Não deixa de ser curiosa esta discussão recorrente, numa sociedade que se sente tão pouco à vontade para falar de morte e pensar a sua morte como algo natural e incontornável no nosso ciclo biológico, que continua a desejar ocultar más notícias aos seus entes queridos (o que eticamente colide com a sua Autonomia), e que continua a não ter por hábito discutir e definir Directivas Avançadas de Vontade. Igualmente surpreendente a adesão em tão reduzida escala ao Testamento Vital, ferramenta que nos permite a todos especificar o tipo de intervenções que não desejamos no nosso final-de-vida e que cada um de nós possa entender como indignas.
Mas a discussão do tema é sempre benéfica, desde que daí resulte clarificação de conceitos e esclarecimento de dúvidas. E será sobretudo benéfica se for estendida a toda a população (a quem temos responsabilidade de fornecer essa mesma informação), e não discutida e decidida apenas em sede parlamentar. Afinal, muito mais do que despenalizar um acto que nada tem de médico, trata-se de colocar à disposição do cidadão comum, de todo e qualquer um de nós uma lei que só poderá ser bem utilizada se for globalmente bem compreendida e que só terá razão de ser se vier beneficiar uma parcela significativa da população. Mas será que o número de pessoas que efectivamente desejam ter ao seu dispor este recurso é assim tão representativo?
Morte assistida deve ser entendida como fim-de-vida com assistência plena e multidisciplinar, tentando dar resposta a todas as necessidades que emergem nesta fase, clínicas, psicológicas, espirituais, familiares.
Morte assistida não é morte provocada.
Falar de Eutanásia ou Suicídio Assistido significa falarmos de situações de elevada complexidade e que envolvem sempre imenso sofrimento, seja a nível físico, psicológico, espiritual, ou como é frequente, uma combinação de todos eles.
Falamos frequentemente de Dignidade nestes contextos, como se a Dignidade fosse algo que nos fosse automaticamente confiscado ao diagnosticar-se uma doença grave ou que previsivelmente me torne dependente. Mas Dignidade passa acima de tudo pelo respeito como ser humano, como Pessoa. Deixamos de ser Pessoas, e dignas desse mesmo respeito quando ficamos doentes, frágeis ou vulneráveis? Só temos direito a Dignidade enquanto cidadãos activos, que produzem algo e pagam impostos? Receber cuidados, diminui-nos? De que forma? A meu ver, só se forem prestados por pessoas sem qualquer laço de afinidade, sem preparação ou compaixão.
Morrer com Dignidade é sem dúvida um direito que nos assiste a todos, e que pode significar realidades distintas para cada um de nós: o meu conceito de Dignidade, Bem-Estar e Qualidade de Vida, é algo muito pessoal e próprio, resultante das minhas vivências, da minha aprendizagem de vida, dos meus valores, da minha biografia, e do que, a meu ver, dá Sentido à minha vida. E estas vivências são tão minhas e tão únicas que me é difícil imaginar uma lei que contemple o único de cada um de nós… Se puder viver com Dignidade, e de acordo com o que para mim faz sentido, é altamente provável, que a minha morte, quando ocorrer, como sucederá inevitavelmente na minha história de vida, também seja concordante com esses mesmos valores, e porque não? Digna.
Já viver com Dignidade, é talvez algo mais trabalhoso e difícil de conseguir, algo que não depende só de mim…Viver com Dignidade também é diferente de pessoa para pessoa, mas há aspectos que são universais…ter um tecto, ter asseguradas as necessidades básicas, ter família e uma rede social que me suporte, um emprego, uma tarefa qualquer na comunidade que me confira um papel, um estatuto… Mas pode acontecer, por variadíssimas razões cuja análise foge ao âmbito desta reflexão, essas necessidades básicas não estarem asseguradas ou sentir-me um fardo para os demais. Se nessa altura, não tiver família nem uma boa rede social, e sobrevier uma doença que me torne dependente de terceiros que não existem, ou que não desejaria sobrecarregar, provavelmente não verei outra forma “digna” de sair desta situação e aliviar o fardo aos meus cuidadores. Mas quanto do que é necessário e importante para se viver com Dignidade depende só de mim? Quanto depende do contexto social e cultural onde me insiro, da sociedade a que pertenço (ou sentia que pertencia) e para a qual contribui enquanto tive saúde?
Sou médica (internista) há cerca de 25 anos e desde há mais de 10 anos tenho o privilégio de trabalhar em Cuidados Paliativos. Isso quer dizer que há mais de 10 anos que vivo num mundo povoado de pessoas exactamente como eu, mas que desafortunadamente são portadoras de doenças incuráveis, degenerativas e progressivas, que se sabe que vão encurtar o seu tempo de vida e têm o potencial de gerar dependência e comprometer a qualidade de vida.
Infelizmente, uma grande parte das pessoas que vivem este tipo de doenças experiencia o sofrimento, em alguns momentos pontuais, ou a maior parte do tempo do seu trajecto de doença; a maioria exprime, de variadíssimas formas o seu desejo de que o sofrimento acabe, mas ainda assim, nem todas as pessoas que sofrem desejam a morte como forma de terminar o seu sofrimento… o que temos testemunhado é que a maioria das pessoas que sofrem desejam viver sem sofrimento, e não morrer por ele.
Só deseja a morte quem perdeu de todo o desejo e a alegria de viver, quem perdeu a paixão pela vida, e o sentido da mesma. E o Sentido da Vida, não depende apenas do Bem-Estar físico. Depende de uma série de factores e valores em que acreditamos e que nos constituem e identificam como Pessoa.
Se sinto que estou a ser um fardo para a minha família ou comunidade (apesar dos esforços que façam para que de todo não o sinta), se sinto que os meus cuidadores não estão a ser adequadamente acompanhados e suportados, e abdicaram da sua vida, comprometendo o seu futuro (profissional e financeiro) para me prestarem cuidados, naturalmente desejarei encontrar uma forma que me permita libertá-los o mais rápido possível. Este é um panorama real, com que nos deparamos diariamente, que nos confrange como profissionais de saúde impotentes para ultrapassar estas situações, e como cidadã, me envergonha.
Trabalhar em Cuidados Paliativos tem-me permitido aprender e crescer como pessoa, com estas Pessoas cujos capítulos finais da vida tenho o privilégio de acompanhar. Para além da evidência científica onde não posso deixar de basear a minha prática clínica, demonstram-me diariamente que na Vida, como na Medicina, não há certezas absolutas, nem definitivos, e mesmo quando a vida perde a cor e parece ser a preto e branco, compõe-se de mil tons e gradações de cinza que lhe dão profundidade, e perspectiva. Têm-me ensinado que a postura do ser humano perante as situações de doença e fim-de-vida, é imprevisível e frequentemente surpreendente até para o próprio e que ao longo da vida e trajectória de doença vamos experimentando diversas mudanças de espírito. Mostram-me também que a resiliência é uma qualidade humana extraordinária, e que por vezes conseguimos até encontrar sentido na doença e no sofrimento…
Trabalhar em Cuidados Paliativos também me dá a humildade de reconhecer que não só não conseguimos dar resposta a todas as situações onde somos necessários e poderíamos realmente fazer a diferença (e aí está uma área onde ainda há tanto para fazer por este país fora!), como há situações em que a nossa intervenção multidisciplinar não consegue de todo debelar o sofrimento. E como sofremos com esses doentes e essas famílias…
Mas uma Sociedade que aposta os seus recursos numa Vida com Dignidade traz-me muito mais tranquilidade e confiança no futuro (para mim e para os meus), que uma Sociedade que apenas me oferece Morte com Dignidade.
Quando enveredamos pelo discurso “Morte com Dignidade”, e do “Respeito pela Autonomia”, resvalamos perigosamente para um confortável estado de indiferença perante o sofrimento do outro. Reconhecer as necessidades do outro, deve incomodar-nos, impelir-nos a estender a mão, a sair da nossa zona de conforto, às vezes com um simples “o que posso fazer para te ajudar?”. Às vezes o que se requer é muito simples, fácil de conseguir e tem um impacto enorme na vida de quem sofre…e na nossa…
Respeito pela Autonomia é essencial, mas respeito pela Pessoa Humana como um todo, esteja válida ou frágil e vulnerável é absolutamente primordial e o garante de uma Sociedade Humana sólida e que cuida dos seus.
Valores como a Solidariedade e a Compaixão dão trabalho, incomodam, fazem-nos quebrar rotinas, e sair do nosso recolhimento nas redes sociais e tecnologias, mas fazem-nos crescer como comunidade, como sociedade, como seres humanos. Fazem-nos mudar o mundo (de tanta gente) e (tantas vezes!) torná-lo um local (bem) melhor.
Segundo Cicely Saunders, pioneira dos Cuidados Paliativos da era moderna, “How people die remains in the memory of those who live on”. “Como as pessoas morrem permanece na memória daqueles que vivem”. Mas também disse: “Suffering is only intolerable when nobody cares”: O sofrimento só é verdadeiramente intolerável quando ninguém se importa.
Um dos lemas dos Cuidados Paliativos é justamente “porque eu importo”…fazendo-nos perceber que mesmo em situação de irreversível e fim-de-vida, cada um de nós importa, que quando não conseguimos curar, nem tratar, vale sempre a pena cuidar, e um dia…também eu espero que se importem, comigo, por mim, com os meus…demore o tempo que demorar o último capítulo da minha vida… e que não me recordem que poderei encurtá-lo. Façam-me sentir que valho a pena até ao fim, mesmo que morra acamada e dependente, desfigurada e demente. Que não deixei de ser quem sou só porque o meu corpo me mostra a fragilidade de que todos somos feitos. Cuidem de mim e acarinhem-me até chegar a hora de eu partir, e nessa altura, não me prendam, deixem-me partir em paz…mas não me empurrem antes de chegar essa hora, nem me abandonem. Cuidem de mim e obrigada por o fazerem, porque não há tarefa mais nobre, nem mais humana que a de cuidar de alguém…”
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