TEV e Cancro: uma ligação estreita e complexa
No dia 9 de março de 2018, com organização do Grupo de Estudos Oncológicos e apoio do IPO do Porto, realizou-se a reunião Venous Thromboembolism and Cancer, na qual foram revistas as estratégias profiláticas e terapêuticas do tromboembolismo venoso (TEV) associado ao cancro, assim como as mais recentes novidades no que respeita à avaliação e estratificação do risco de TEV nesta população. O evento juntou especialistas portugueses e estrangeiros e deixou claro que as duas doenças se influenciam mutuamente e são responsáveis por quadros clínicos de maior gravidade, sendo o TEV a segunda principal causa de morte em doentes oncológicos. O evento foi presidido por Deolinda Pereira, diretora do Serviço de Oncologia Médica do IPO do Porto, e por Júlio Oliveira, oncologista do IPO do Porto.
Novos biomarcadores para a estratificação do risco de TEV
Andrés Muñoz, médico do serviço de Oncologia do Hospital General Universitário Gregorio Marañón, em Madrid, Espanha, foi o primeiro orador da sessão e abordou o tema “Risco de TEV no cancro – epidemiologia e novos biomarcadores”. De acordo com o especialista, vários fatores potenciam o risco de TEV em doentes com cancro. Desde logo as características de cada doente, o tipo de tumor e o tipo de tratamento a que o doente é submetido. Por outro lado, o TEV é, por si só, um fator de mau prognóstico em doentes oncológicos. Tomando como exemplo os tumores do pâncreas, o Dr. Andrés Muñoz referiu que a ocorrência de um TEV precoce está associada a um pior prognóstico e a um risco acrescido de mortalidade.
Temos que ter em conta que 60 a 70% dos embolismos pulmonares (EP) fatais apenas são detetados na autópsia. E a incidência de TEV assintomático tem o dobro da incidência do TEV com manifestação de sintomas. “Podemos concluir que não temos a real noção do impacto epidemiológico do TEV”. No entanto, na população com cancro, o TEV é a segunda causa de morte, logo depois da própria doença oncológica. Daí a importância da implementação de tromboprofilaxia primária nos doentes que apresentam um risco trombótico mais elevado, como é o caso dos que têm tumores pancreáticos. De acordo com o palestrante, quatro estudos demonstraram uma incidência de TEV de 34,8% a 39% em doentes com tumores do pâncreas, pelo que “esta é uma população que poderá beneficiar de tromboprofilaxia primária, assim como os doentes que têm tumores hematológicos, uma vez que apresentam um risco de TEV igualmente elevado”. Partindo dos fatores de risco dos doentes (idade, género, etnia, comorbilidades e história de TEV), do tratamento (cirurgia, hospitalização, quimioterapia, cateter venoso central, transfusões, etc) e do cancro (tipo, localização, estadio), Khorana desenhou um score de estratificação do risco que até agora tem sido utilizado na eleição dos doentes que devem fazer profilaxia. No entanto, no parecer dE Andrés Muñoz, novos fatores devem ser considerados nos scores de avaliação do risco de TEV associado ao cancro:
- Fatores genéticos relacionados com o próprio doente;
- Biomarcadores do tumor (mutações, expressão de determinados genes, etc);
- Fatores relacionados com as novas ferramentas terapêuticas desenvolvidas ao longo da última década.
“Nem todos os agentes citostáticos apresentam o mesmo risco. O mesmo se verifica para as inúmeras terapêuticas dirigidas de que atualmente dispomos. E a imunoterapia, que risco trombótico estará associado à grande inovação do século no tratamento do cancro?”, referiu. Segundo Andrés Muñoz, a inclusão de perfis genómicos nos modelos de avaliação do risco melhora significativamente a predição de TEV em doentes com cancro. Aliás, acrescentou, “foi isso que se verificou numa comparação entre o score de Khorana e o Thrombo inCode (TiC) score (que inclui biomarcadores)”. Na era da Oncologia de Precisão, em que é possível eleger a melhor terapêutica antineoplásica para cada doente, “é também importante fazer uso da genética para uma profilaxia do TEV mais precisa”. Sendo o TEV uma doença complexa, composta pela influência da genética e pelo peso de fatores ambientais, “temos de mudar a nossa abordagem, pois atualmente descuramos a parte genética e apenas damos importância aos fatores clínicos”. Aliás, acrescentou, “quando avaliamos um doente e questionamos sobre a história familiar e pessoal, perguntamos sempre sobre casos prévios de cancro, mas nunca perguntamos sobre o TEV”, acrescentou. Já na fase final da sua apresentação, o especialista referiu que, a par da prevenção e tratamento do TEV, no futuro, as preocupações deverão voltar-se também para o tromboembolismo arterial.
Risco de tromboembolismo e tromboprofilaxia
Numa comunicação sobre “Modelos preditivos e estratificações do risco de TEV”,Corinne Frère, hematologista do Hospital Universitário Pitié-Salpêtrière, em Paris, começou por explorar a ligação entre o TEV e o cancro, revelando que 4 a 20% dos doentes com cancro desenvolvem TEV durante a sua doença, bem como 12% dos doentes com TEV idiopático têm um cancro escondido. “Esta associação representa um peso acrescido para o doente, pois sabemos que o TEV é a segunda causa de morte em doentes com cancro, a sua presença diminui a esperança de vida nestes doentes e piora o seu prognóstico, com um impacto relevante na qualidade de vida. Depois tem também um grande impacto económico com custos cerca de 50% mais elevados comparativamente com doentes que têm cancro sem TEV. Contudo, se nos doentes internados ou submetidos a cirurgia, a implementação de profilaxia parece estar devidamente estabelecida nas instituições, o mesmo não acontece nos doentes oncológicos de ambulatório”. Nem todos os doentes apresentam o mesmo risco de TEV, pelo que, no parecer de Corinne Frère, “é importante estratificar os doentes com risco elevado ou muito elevado, para que sejam aplicadas as medidas profiláticas recomendadas.”
O score de Khorana continua a ser o único amplamente validado em estudos independentes e, por isso, é nele que se baseiam as principais guidelines para a profilaxia do TEV em doentes com cancro. “Simples, fácil de utilizar, com variáveis facilmente mensuráveis, o modelo de Khorana tem um elevado valor preditivo negativo, permite prever o benefício da tromboprofilaxia e tem outras potenciais aplicações noutras indicações”, descreveu a especialista. Contudo, este modelo apresenta algumas limitações. Desde logo, “tem um baixo valor preditivo positivo, a maior parte dos doentes são classificados com risco intermédio e não tem eficácia consistente em alguns tipos de tumor (cancro do pulmão, por exemplo)”. Para colmatar as limitações do score de Khorana, outros modelos têm sido desenvolvidos no sentido de melhor prever o risco de TEV nos doentes com cancro. O Vienna Cancer and Thrombo sis Study (CATS), o PROTECHT score, o CONKO score e o OnKo Tev score, são alguns dos exemplos em que foram considerados fatores de risco adicionais que não constam no modelo de Khorana. “O mais eficaz será aquele que demonstrar maior capacidade preditiva para a ocorrência de um TEV na população de doentes oncológicos”, defendeu Corinne Frère.
Estudo arte
Ana França, do Instituto Português do Sangue e Transplantação, centrou a sua apresentação nos resultados do estudo ARTE (Avaliação do Risco de TromboEmbolismo venoso). “É certo que reconhecemos a importância da tromboprofilaxia nos casos de TEV, mas a realidade mostra que os números não param de aumentar. É por isso essencial identificar quais os doentes que podem beneficiar da profilaxia primária, por forma a selecionarmos os casos e implementarmos a profilaxia do modo e com a abrangência que deve ter”, começou por dizer, frisando que o principal objetivo do ARTE foi avaliar a incidência do risco de TEV nos doentes internados em Portugal usando um modelo de avaliação de risco misto, e ainda caracterizar o perfil dos doentes com fatores de risco para TEV e determinar que proporção destes realmente receberam profilaxia. “Os resultados mostram que 95% dos doentes tem um risco intermédio ou alto. Na Medicina Interna 85% dos doentes estão em risco, 99% em Oncologia, 97% em Ortopedia e 96% em Cirurgia. São resultados que mostram claramente que temos de melhorar relativamente à profilaxia”, mostrou a especialista, que revelou ainda que entre os doentes internados apenas 67% fazia profilaxia apesar do risco elevado, e apenas 20% fazia profilaxia depois da alta. Mesmo assim, Ana França ressalvou que estes são dados que mostram uma melhoria significativa face a estudos anteriores (como é o caso do ENDORSE), apesar da margem para melhorar.
Os casos de cancro do pulmão de células não pequenas com ALK+
Nerea Muñoz, oncologista do Hospital Universitario 12 de Octubre, em Madrid, Espanha, focou a sua atenção no tema “Incidência, preditores e significância prognóstica de eventos tromboembólicos em doentes com cancro do pulmão de células não pequenas com ALK+”, mas antes, realçou que a prevalência da associação entre trombose e cancro tem vindo a aumentar. Sobre os adenocarcinomas pulmonares em estado avançado, a especialista afirmou que representam 15% dos doentes com cancro de pulmão de células não pequenas com TEV. “Sabemos de alguns trabalhos que a incidência de doença tromboembólica pode ser particularmente alta em doentes com cancro do pulmão com translocação ALK+, estando associada a maiores taxas de EP e TEV e, por isso, procurámos analisar a incidência de doença tromboembólica nesta população, identificar fatores preditivos e estudar a sua associação com a sobrevivência”, explicou, avançando com resultados. Com base num estudo desenvolvido no seu centro, a especialista referiu que “30% destes doentes tiveram um evento tromboembólico, o que é bastante similar ao constatado para o carcinoma pancreático. É um valor alto. Se olharmos às características dos eventos tromboembólicos, 94% foram venosos e apenas 3% arteriais. A maioria foram EP, mas houve também casos de trombose visceral e eventos tromboembólicos arteriais. Além disso, a taxa de trombose recorrente ficou nos 16%, e mais de metade da população estudada estava sob medicação com anticoagulantes.” Quanto a fatores preditivos, Nerea Muñoz identificou as metástases do fígado e a contagem de leucócitos, concluindo com dados da sobrevivência destes doentes, que mostram que os doentes sem doença tromboembólica vivem mais.
Eventos tromboembólicos no Mieloma Múltiplo (MM)
“O MM é uma doença que tem um risco elevado de trombose, não só pela doença em si, mas também pela terapêutica usada, com altas doses de corticoterapia, lenalidomida e talidomida que representam um risco acrescido de trombose”, referiu Sérgio Chacim, no início da sua intervenção.
Depois de dar a conhecer alguns dados de um estudo desenvolvido com 235 doentes do IPO do Porto, recolhidos entre 2009 e 2014, o hematologista considerou que é importante estratificar os doentes de acordo com o risco de forma a aplicar as medidas profiláticas apropriadas, prevenir o TEV, melhorando a qualidade de vida. Neste grupo avaliado, foram identificados 19 casos de TEV, o que resulta numa incidência cumulativa de 8,1%. A mediana de idades dos doentes que sofreram um TEV era de 69 anos, 14 deles estavam hospitalizados e 5 estavam em ambulatório. Na altura do diagnóstico de TEV, 9 doentes estavam a receber tratamento para o MM. No que respeita à tromboprofilaxia, 6 destes doentes estavam a fazer ácido acetilsalicílido, 5 estavam a fazer HBPM e 1 estava a fazer acenocoumarol. “Em 3 doentes, o diagnóstico de TEV coincidiu com o de MM, pelo que não estava a ser feita tromboprofilaxia, outros 3 não estavam a fazer qualquer profilaxia, embora já tivessem diagnóstico de MM, 2 foram diagnosticados fora do IPO; pelo que não tivemos acesso às medidas profiláticas que estavam implementadas, um só teve diagnóstico de MM algum tempo depois de ter sofrido o TEV”, descreveu Sérgio Chacim. Depois do TEV, todos os 19 doentes fizeram hipocoagulação com HBPM durante os três a seis primeiros meses e depois fizeram switch para anticoagulação oral.
Em tom de conclusão, o especialista referiu que o risco de TEV é particularmente elevado em doentes com tumores hematológicos, sobretudo MM, pelo que a estratificação do risco deve ser feita à luz dos scores existentes para que a tromboprofilaxia seja implementada de forma eficaz e segura.
Tratamento do TEV e risco de recorrência
Na intervenção seguinte, Anna Falanga, do Hospital Papa Giovanni XXIII, em Bergamo, Itália, abordou a utilização dos Non-vitamin K antagonist oral anticoagulants (DOACs) no tratamento do TEV. “O risco de recorrência de TEV e hemorragia durante a anticoagulação estão aumentados em doentes que têm simultaneamente TEV e cancro, num valor que se estima estar perto dos 15% para a recorrência e até 6% para a hemorragia. Por isso, a continuação da anticoagulação é favorecida em detrimento da sua descontinuação, pois o risco de recorrência supera o risco de hemorragia sob anticoagulação”, disse Anna Falanga, que em seguida abordou as guidelines da American Society of Clinical Oncology (ASCO) no tratamento destes casos. “Estas recomendações sugerem a utilização de HBPM como a abordagem inicial mais apropriada para os 5 a 10 primeiros dias de anticoagulação para os doentes com cancro e TEV, assim como numa abordagem de longo prazo. Depois dos seis meses, a anticoagulação deve ser considerada para os doentes com cancro ativo, independentemente da escolha do fármaco”, mostrou a médica, que sublinhou que os DOACs oferecem um “panorama de mudança, uma opção atrativa”, devido à sua administração oral, dose fixa e independente de uma rotina de controlo laboratorial. Ainda assim, “são ainda escassos os dados da investigação clínica com estes novos fármacos”, sublinhou, referindo que o estudo Hokusai-VTE demonstrou uma eficácia semelhante entre edoxabano e uma HBPM na redução de eventos trombóticos, contudo, um risco hemorrágico ligeiramente mais elevado para o DOAC.
Tratamento de doentes em condição especial
Maria Rosales, imuno-hemoterapeuta do IPO Porto, foi a palestrante seguinte e deu nota das necessidades especiais de alguns doentes oncológicos com TEV, lembrando também que o risco varia ao longo do curso da doença e que o tipo de tumor tem implicações importantes. Quanto ao tratamento, a especialista fez referência ao estudo CLOT (Comparison of Low-Molecular-Weight Heparin vs Oral Anticoagulant Therapy for the Prevention of Recurrent Venous Thromboembolism in Patients with Cancer), que permitiu determinar que as HBPM são o standard of care deste grupo de doentes, com menor nível de recorrências relativamente ao tratamento oral. A terminar deixou alguns conselhos: “A nossa decisão terapêutica perante uma trombose num doente oncológico deve, sempre que possível, ser baseada na evidência. O tratamento após os seis meses requer avaliação pormenorizada e em casos de insuficiência renal, é de extrema importância uma monitorização apertada devido ao risco acrescido de eventos hemorrágicos.” Na perspetiva da especialista importa ter algoritmos de atuação para o tratamento do TEV em doentes com recorrência do episódio trombótico, hemorragia ou trombocitopenia no contexto oncológico.
Update das guidelines
Na última intervenção da reunião, Ana Pais, oncologista do IPO Coimbra e fundadora do Grupo de Estudo Português do Cancro e Trombose, dedicou a sua apresentação às guidelines para o tratamento dos doentes oncológicos com TEV, salientando que são recomendações cujo principal objetivo é otimizar os cuidados prestados ao doente oncológico, baseados em evidência científica, e que pesam os benefícios e malefícios para o doente. Referindo-se já às atualizações de guidelines desde 2016 e em particular às guidelines da International Initiative on Thrombosis and Cancer (ITAC) a especialista referiu que as mesmas recomendam nos primeiros 10 dias HBPM, HNF ou fondaparinux. Após os 10 dias de tratamento as HBPM são a terapêutica recomendada durante pelo menos durante três meses. Já quanto aos DOAC, Ana Pais adiantou que, segundo estas recomendações, podem ser considerados em doentes estáveis, que não estejam a fazer terapêutica sistémica e em que os antagonistas da vitamina K (AVK) não estejam disponíveis. “Já depois dos seis meses deverá ser uma decisão personalizada”, considerou. A especialista mencionou ainda a atualização das guidelines do CHEST, referindo as alterações com implicação na prática clínica: “Para casos de TEV em doentes sem cancro, os DOAC são a terapêutica de primeira linha em detrimento dos AVK e da HBPM. Já no doente oncológico, a HBPM continua a ser a terapêutica de primeira escolha, face aos AVK e DOAC.”
A terminar, Ana Pais dedicou alguns minutos às implicações de não seguir as guidelines e lembrou, a título de curiosidade, que a literatura mostra que a adesão às recomendações é maior de acordo com a severidade da doença oncológica ou do evento tromboembólico, e sempre que os médicos têm perante si doentes metastizados ou imobilizados.
Por Cátia Jorge